BBC – Nas últimas semanas, vem ganhando força em algumas alas do Partido Democrata americano a ideia de que, caso seja o vencedor da eleição presidencial de 3 de novembro, o ex-vice-presidente e candidato presidencial Joe Biden deveria aumentar o número de juízes da Suprema Corte, a mais alta instância da Justiça dos Estados Unidos.
A Suprema Corte americana tem nove juízes, todos com cargo vitalício, e costuma ser dividida entre uma ala liberal, formada por nomeados por presidentes democratas, e outra ala conservadora, composta por indicados por presidentes republicanos.
A estratégia de aumentar o número de juízes — e, assim, dar mais força a uma ou outra ala — foi tentada pela última vez há mais de 80 anos, sem sucesso. Mas o debate ressurgiu no mês passado com a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, uma das principais vozes progressistas do tribunal.
Apesar de estar na reta final da disputa por um segundo mandato e de aparecer em desvantagem em muitas pesquisas de intenção de voto, o presidente republicano Donald Trump nomeou imediatamente uma sucessora para a vaga deixada por Ginsburg: a juíza Amy Coney Barrett.
A decisão de ir adiante com a nomeação às vésperas da eleição irritou ainda mais os democratas porque, em fevereiro de 2016, quando o juiz conservador Antonin Scalia morreu 11 meses antes do fim do mandato de Barack Obama, os republicanos se recusaram a considerar o nome indicado pelo presidente democrata para a vaga, alegando que o povo americano deveria ter o direito de opinar nas urnas.
Scalia só foi substituído em abril do ano seguinte, depois que Trump assumiu o poder e nomeou o juiz Neil Gorsuch. Muitos democratas acusam os republicanos de terem “jogado sujo” e “roubado” essa vaga, que deveria ter sido preenchida por um juiz escolhido por Obama. Muitos republicanos, por sua vez, afirmam que os democratas, em seu lugar, teriam feito o mesmo.
Os juízes nomeados para a Suprema Corte americana precisam ser aprovados pelo Senado, que atualmente, assim como em 2016, é controlado pelo Partido Republicano e liderado pelo senador Mitch McConnell. Com isso, o processo de nomeação de Barrett foi levado adiante rapidamente. A expectativa é de que ela seja confirmada nos próximos dias.
Com a confirmação de Barrett, a Suprema Corte terá seis juízes na ala conservadora e apenas três liberais socialistas. Essa supermaioria conservadora deverá ter impacto em decisões futuras sobre diversos temas, como acesso a saúde pública, aborto, liberdade religiosa, direitos LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e queer), regulações ambientais e até mesmo sobre as eleições, caso o resultado seja contestado.
Histórico
É nesse contexto que vem crescendo a pressão em algumas alas do Partido Democrata para que Biden considere a possibilidade de aumentar o número de juízes da Suprema Corte caso seja eleito, indicando novos magistrados liberais e, assim, diluindo o peso dos conservadores e restaurando o equilíbrio do tribunal.
Como o número de juízes da Suprema Corte não é determinado pela Constituição americana, um presidente que tenha o apoio do Congresso pode aprovar uma lei para mudar a composição do tribunal. Mas a manobra é cercada de polêmica.
Em seu início, a Suprema Corte tinha seis juízes, nomeados pelo primeiro presidente americano, George Washington, em 1789. No século seguinte, o número de integrantes foi ampliado e reduzido várias vezes até que, em 1869, o Congresso determinou que o tribunal teria nove juízes, composição inalterada desde então.
O último presidente a tentar aumentar o número de juízes da Suprema Corte foi o democrata Franklin Roosevelt, em 1937, após uma vitória esmagadora na eleição do ano anterior, em que conquistou um segundo mandato. Na época, o Partido Democrata controlava não apenas a Casa Branca, mas também a Câmara e o Senado.
“Quando Roosevelt tentou, ele estava em uma posição de poder extraordinária“, diz à BBC News Brasil o especialista em História da Suprema Corte americana Richard Friedman, professor de Direito na Universidade de Michigan. “Mas, apesar disso, não conseguiu levar a mudança adiante.”
Roosevelt estava frustrado com o fato de que a Suprema Corte vinha derrubando várias das leis do New Deal, a série de programas implementados por seu governo para impulsionar a economia americana, abalada pela Grande Depressão. Esses programas tinham enorme apoio da população, e as decisões do tribunal eram impopulares.
A proposta de Roosevelt era nomear um novo juiz para cada integrante da Suprema Corte que tivesse mais de 70 anos de idade. Caso a medida fosse levada adiante, ele poderia nomear seis novos membros, aumentando o número de juízes do tribunal para 15.
Argumentos
A justificativa de Roosevelt era a de que o tribunal estava sobrecarregado e precisava de “uma injeção constante e sistemática de sangue novo“. Mas o plano foi rejeitado inclusive por alguns membros de seu partido e até mesmo pelo vice-presidente.
Enquanto defensores da medida argumentavam que os juízes, com cargo vitalício, ignoravam a vontade da população em suas decisões, opositores alertavam que a mudança colocava em risco a independência do Judiciário e abria um precedente para que futuros presidentes manipulassem a Corte por motivos ideológicos.
“Quando a Comissão Judiciária do Senado votou contra a proposta, disse que essa era uma medida que deveria ser tão vigorosamente rejeitada que algo semelhante jamais voltaria a ser apresentado aos representantes do povo americano“, salienta Friedman. Mais de 80 anos depois, a ideia voltou à tona e continua provocando divisões. Muitos defensores argumentam que a atual composição da Suprema Corte não reflete a vontade do povo americano. Ressaltam que os últimos dois juízes a ingressar no tribunal — Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh — foram nomeados por Trump, um presidente eleito mesmo sem ter conquistado a maioria do voto popular, e aprovados sob grande divisão no Congresso.
Outro argumento é o de que, caso Trump perca a eleição de novembro, ele entraria no período apelidado pelos americanos de “pato manco“, quando um novo presidente já foi eleito, mas ainda não tomou posse. Ou seja, há a possibilidade de um presidente de saída da Casa Branca nomear um integrante que permanecerá na Suprema Corte por décadas.
Mas opositores da manobra dizem que é uma medida radical que afetaria a legitimidade da Suprema Corte e abriria caminho para que o partido no poder mude a composição do tribunal por motivos políticos.
O que diz Biden
O assunto não é unanimidade nem mesmo entre os democratas. Enquanto muitos na ala mais progressista do partido são favoráveis à mudança, outros são mais resistentes à manobra.
Nomes como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez e o líder da minoria no Senado, Chuck Schumer, já disseram que todas as opções estão em aberto. Durante as primárias, 11 pré-candidatos democratas disseram estar abertos à discussão.
Desde que sua candidatura foi oficializada, Biden e sua vice, a senadora Kamala Harris, vinham evitado se posicionar sobre o assunto. No passado, Biden já manifestou oposição à ideia, advertindo que poderia não apenas se virar contra democratas quando os republicanos voltassem ao poder, mas também colocar em risco a credibilidade da Corte.
Segundo analistas, a reticência de Biden seria uma tentativa de evitar dar mais munição aos ataques de Trump, que diz que o Partido Democrata é dominado pela extrema esquerda. Pertencente à ala moderada do partido, Biden espera conquistar os votos de republicanos descontentes com Trump.
Mas nas últimas semanas, com a nomeação às pressas de Barrett, o candidato vem mudando de tom. Segundo trechos de uma entrevista que irá ao ar na rede CBS no próximo final de semana e que foram antecipados pela imprensa americana, Biden dirá que, se for eleito, poderá criar uma comissão bipartidária de especialistas para estudar a possibilidade de mudanças na Suprema Corte.
A própria Ruth Bader Ginsburg disse no ano passado, em entrevista à rádio pública NPR, que essa era uma “má ideia” já em 1937 e continuava sendo uma má ideia oito décadas depois, porque faria com que o tribunal parecesse partidário.
Para levar a mudança adiante, os democratas precisariam não apenas conquistar a Casa Branca, mas também o controle do Congresso. Enquanto as previsões são de que o partido mantenha a liderança da Câmara, ainda não se sabe qual será o resultado no Senado.
Corte mais politizada
Analistas observam que, de 1937 para cá, a nomeação de juízes para a Suprema Corte ficou mais ideológica.
“A Suprema Corte é mais politizada hoje do que era no passado“, diz à BBC News Brasil o cientista político Todd Belt, professor da Universidade George Washington.
Belt ressalta que a Suprema Corte vem evitando decisões que sejam muito abertamente políticas, e lembra que o presidente do tribunal, o juiz John Roberts (nomeado pelo presidente republicano George W. Bush), tem se aliado à ala liberal em várias decisões, em um esforço para garantir a credibilidade da Corte.
“Roberts costuma dizer que não há (na Suprema Corte) juízes democratas ou republicanos, mas simplesmente juízes. Mas isso é menos verdade hoje (do que no passado). Uma das razões pelas quais Trump foi eleito foi a promessa aos eleitores evangélicos de que iria nomear juízes conservadores para a Suprema Corte“, destaca Belt.
Friedman, da Universidade de Michigan, também ressalta que, diferentemente do que ocorria em 1937, atualmente as nomeações para a Suprema Corte são consideradas “oportunidades ideológicas“.
“Espera-se que cada presidente aproveite a oportunidade. Se não fizer isso, os membros de seu partido ficarão muito descontentes“, afirma Friedman.