FOLHAPRESS (Anna Virgina Balloussier – Rio de Janeiro, RJ)
Entre passar fome e passar raiva, a auxiliar de limpeza Amanda, 32, prefere a segunda opção. Quando morava no sertão baiano, todo fim de mês, com a conta bancária esvaziada, chegava a ficar dois, três dias à base de “salgadinhos tipo Fandangos, mas um genérico baratinho, que é o que dava para pagar”. Em 2019, ela e o marido conseguiram entrar ilegalmente nos EUA. Hoje vivem de bicos informais que rendem o suficiente para “comerem até demais”, ela diz, reclamando da silhueta rechonchuda.
Tudo ia bem até o país ocupar a dianteira do recorde de mortos da Covid-19 -mais de 280 mil até aqui. Amanda conta que ficou furiosa quando ouviu um homem defender no mercado que o governo assegure que imigrantes ilegais sejam os últimos na fila assim que a vacinação contra o coronavírus começar. A baiana respirou fundo e deixou para lá, pois nem sabe se irá atrás do imunizante.
Como tantos em sua situação, ela tem mais medo de ser deportada do que de contrair e espalhar a doença. Longe de ser descabida, sua oscilação permeou uma carta que o governador de Nova York, Andrew Cuomo, enviou no começo do mês para o Departamento de Saúde americano.
Cuomo, um democrata, se dizia preocupado que a administração republicana de Donald Trump repasse a órgãos de segurança informações pessoais de imigrantes irregulares. O governo federal sugere que os estados usem os dados de carteira de motorista, seguridade social ou passaporte para identificar cada pessoa que for vacinada. Uma política-espantalho para quem teme ser rastreado e mandado embora do país.
Se pessoas sem documento forem dissuadidas de aderir à imunização, argumenta o governador, isso não coloca em risco apenas a saúde delas, mas “a eficácia de todo o programa de vacinação”.
Imigrantes, assim como a população afroamericana, tendem a ser mais expostos ao vírus. Muitos não podem se dar ao luxo de ficar em casa e não trabalhar ou exercer atividades em home office.
Também estão em funções que exigem contato constante com o público. O espanhol é recorrente entre faxineiros de clínicas e hospitais e entregadores de delivery, por exemplo.
É um grupo escaldado com políticas públicas que seguem o ditado da mão que afaga ser a que apedreja. Em novembro, um juiz federal ordenou que o governo Trump cancelasse uma medida anunciada em 2018 para permitir que imigrantes dependentes de ajuda governamental tivessem o green card negado.
Era, na prática, um teste de riqueza: candidatos a residência permanente nos EUA não deveriam precisar de programas assistencialistas. Para estrangeiros pobres que sonham em ficar para sempre no país, aceitar suporte financeiro para sobreviver poderia enterrar a chance de viver e trabalhar legalmente ali.
A Covid-19 acrescentou outra camada de drama para essas pessoas, que agora têm o receio de se vacinar contra um vírus que afeta sobretudo as comunidades mais vulneráveis. “O atual programa federal não financia esforços estaduais para imunizar comunidades negras, pardas, asiáticas e de baixa renda que não são atendidas por instalações de saúde privadas”, afirma o governador Cuomo.
O presidente eleito Joe Biden escolheu Xavier Becerra, um ex-deputado democrata e atual procurador-geral da Califórnia, para ser o secretário de Saúde e Serviços Humanos de seu governo. O anúncio foi feito neste domingo (6), após reclamações sobre a falta de latinos no novo gabinete do democrata.
Se confirmado no cargo, Becerra terá como principal missão lidar com a crise sanitária no país.
Outras partes do planeta reprisam o mesmo temor. O Brasil inclusive.
“Acende bastante o alerta vermos imigrantes indocumentados no Brasil serem deportados depois de buscar tratamento de saúde em hospitais públicos”, diz o antropólogo Alexandre Branco Pereira, coordenador na Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados.
Há registros de bolivianos deportados do Centro-Oeste, e relatos que estão sendo investigados em São Paulo, afirma. “Teoricamente não existe ligação entre aparelhos de saúde e forças de segurança pública. É aliás uma questão ética não acionar a polícia se encontram alguém que está com o documento vencido ou sem documento, até porque o SUS não exige isso, é universal.”
A rede pediu ao governo de São Paulo, ainda sem resposta, para integrar a comissão responsável pela futura campanha de vacinação. Só em São Paulo são 300 mil imigrantes, o equivalente a uma cidade de médio porte.
Segundo Pereira, as políticas pensadas para o grupo são pares com as voltadas para moradores de rua, o que não funciona. É preciso levar em conta as particularidades linguísticas e culturais, diz.
Cita como exemplo os abrigos paulistanos que acolheram venezuelanos fugidos da crise humanitária em sua terra. “As famílias relatavam ameaças e que havia muitos moradores de rua em situação de drogadicção. Quando iam reclamar, sofriam ameaças, e um deles foi desligado por isso.”
Em nota, a Secretaria de Saúde paulista diz que “tão logo haja imunizante disponível”, definirá “população-alvo com base em protocolos técnicos e normas estabelecidas pelas autoridades sanitárias”.
A expectativa para uma campanha de vacinação global traz em sua sombra essa outra modalidade de xenofobia, termo que acompanhou a pandemia desde o dia 1. Mesmo na Nova Zelândia, vista como padrão-ouro no combate à Covid-19.
Por lá o governo lançou em julho a campanha Racismo Não É Piada, após uma pesquisa indicar que um em cada quatro neozelandeses se recusariam a comer em restaurante chinês ou andar num Uber com motorista de nome do país asiático que foi o berço da pandemia.
Líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro adotaram a narrativa xenófoba do “vírus chinês”. A própria China, ao ver que tinha a doença sob controle enquanto o resto do mundo ainda penava com ela, também hospedou episódios de discriminação, como a recusa de estabelecimentos locais em servir estrangeiros.
Paul Mozur, repórter do New York Times baseado em Xangai, tuitou em abril: foi chamado de “lixo gringo” num restaurante. Os ânimos se inflamaram após viralizar, numa rede social chinesa, a história em quadrinhos “Guia Ilustrado de Como Resolver o Lixo Gringo”, na qual visitantes de outros países eram depositados em lixeiras.
As informações são da Folhapress