BBC NEWS BRASIL – O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta tarde o julgamento que pode proibir a prisão de condenados em segunda instância. A decisão abriria caminho para a soltura de até 4,8 mil presos no país, segundo estimativa do Conselho Nacional de Justiça, entre eles o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O placar, por enquanto, está em quatro votos a favor da prisão antes da conclusão do processo (Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux) e três contra (Marco Aurélio, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski).
Dos quatro ministros que faltam se manifestar, não há dúvida sobre o que esperar de Celso de Mello e Cármen Lúcia. Em todas as vezes que o STF se debruçou sobre o tema, desde 2009, ambos têm mantido a mesma posição: ele pela possibilidade da prisão apenas após o trânsito em julgado (quando todos os recursos se esgotam e o processo é encerrado) e ela pela prisão após condenação em segunda instância. Isso traz o placar virtualmente para um 5 a 4 pelo cumprimento antecipado da pena.
Por isso, a grande expectativa está no posicionamento de Gilmar Mendes e Dias Toffoli, atual presidente da Corte, pois ambos já mudaram seus votos uma vez e agora indicam disposição de alterá-los de novo. Depois de apoiarem em 2016 a prisão antecipada, os dois tendem hoje a votar pelo trânsito em julgado ou por uma posição intermediária, que permitiria a prisão após decisão do Superior Tribunal de Justiça (terceira instância).
É função de uma Corte Suprema interpretar a aplicação da Constituição Federal e das leis. O vaivém de Gilmar e Toffoli desperta críticas de juristas, que consideram que a inconstância na sua leitura da Carta Magna afeta a credibilidade do STF e abre espaço para questionamentos sobre uma “politização” das decisões.
Segundo o advogado criminalista Gustavo Badaró, professor de processo penal na USP, é normal que ministros mudem seu voto. No entanto, ressalta, isso costuma ocorrer quando há alterações no texto constitucional ou novas leis, o que não ocorreu de 2016 para cá nessa matéria.
“É de se esperar que eles tivessem uma posição mais definida. Mudou de posição uma vez, até poderia ser, mas tem ministro que já está caminhando para uma terceira posição (na análise da prisão após segunda instância). É difícil você imaginar que são mudanças só por pura evolução do pensamento de cada um deles”, critica.
A constitucionalista Estefânia Barboza, professora da Universidade Federal do Paraná, lembra que a decisão tomada em 2016 permitindo a prisão após condenação em segunda instância ocorreu quando a Operação Lava Jato estava fortalecida e havia grandes manifestações contra o PT e o governo Dilma Rousseff.
Agora, nota a professora, a Lava Jato está desgastada após o site The Intercept Brasil revelar trocas de mensagens envolvendo procuradores da força-tarefa no Paraná e o ex-juiz Sergio Moro (hoje Ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro) indicando possiveis atuações ilegais dessas autoridades.
“Hoje parece haver uma visão em parte do STF de que a Lava Jato atuou contra o devido processo legal, avançando contra ministros da Corte. Essa conjuntura toda, com o enfraquecimento da Lava Jato, influencia uma mudança de posição do Supremo (sobre a prisão após segunda instância)”, acredita Barboza.
“Eu defendo a coerência (nos votos). Lógico que aparenta uma insegurança e uma incerteza se os ministros começam a votar porque é o caso Lula ou não é o caso Lula, ou porque estão com medo da opinião pública”, afirma ainda.
Entenda o vaivém
Os juristas favoráveis à prisão antecipada consideram que há recursos demais no Brasil que permitem adiar sucessivamente o fim do processo, favorecendo a impunidade. Eles defendem que prisão deve ser autorizada após a condenação em segunda instância (os tribunais regionais ou estaduais) porque é nesse estágio que se conclui a análise de provas. Já as cortes superiores (STF e STJ) avaliam se o processo foi conduzido dentro da lei, garantindo a ampla defesa e um julgamento justo.
Já os que defendem que o cumprimento da pena seja autorizado apenas ao final do processo argumentam que a Constituição de 1988 prevê, no artigo quinto, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O que significa, argumentam, que os réus devem ser considerados inocentes até que se esgotem todos os recursos.
Desde a promulgação da Constituição, vinha prevalecendo o entendimento de que era possível cumprir a pena antecipadamente, mas não havia uma orientação clara do STF sobre o assunto. Até que em 2009 o plenário analisou pela primeira vez a questão ao julgar um habeas corpus (pedido de liberdade) específico de um condenado.
Naquele momento, Gilmar Mendes já era ministro do STF e votou contra a possibilidade de uma pessoa ser presa antes do esgotamento de todos os recursos – na ocasião, essa posição prevaleceu por 7 a 4.
Já em 2016, quando STF voltou a julgar o assunto em duas ocasiões, o ministro defendeu enfaticamente a prisão antecipada. Naquele ano, a Corte primeiro analisou outro habeas corpus e depois julgou liminarmente (provisoriamente) duas ações diretas de constitucionalidade que pediam a proibição da prisão antecipada. São essas ações que estão agora sendo julgadas definitivamente e podem mudar a orientação da Corte.
“Praticamente não se conhece no mundo civilizado um país que exija o trânsito em julgado. Em princípio, se diz que pode-se executar a prisão com a decisão de segundo grau”, argumentou Gilmar, ao votar pela prisão antecipada em outubro de 2016.
No julgamento, ele inclusive celebrou com ironia prisões realizadas pela Lava Jato. “E acho que os presídios brasileiros vão melhorar daqui pra frente, porque se descobriu que se pode ir para a cadeia. Porque é interessante, nunca ninguém tinha prestado atenção nas más qualidades dos nossos presídios, mas agora se descobriu”, disse.
“E alguém comentava que depois desses episódios de Curitiba houve até uma evolução, o banho frio de Curitiba foi substituído, há até chuveiro elétrico. Portanto, são as melhorias que estão ocorrendo a partir desses ilustres visitantes, dessas celas existentes na Polícia Federal”, acrescentou.
Desde 2017, Gilmar deixou claro que mudaria de lado. Primeiro, indicou que votaria pela possibilidade de prisão após condenação no STJ, como sugerira Toffoli. Já em entrevista à BBC News Brasil em outubro, sinalizou que apoiaria o respeito ao trânsito em julgado e rebateu acusações de que teria mudado de posição depois que a Lava Jato chegou a políticos com quem tem boa relação, no PSDB e MDB.
“Aquilo (a prisão antecipada) que nós decidimos como uma possibilidade (em 2016) se tornou uma regra absoluta. Foi aí que eu disse ‘nós temos de rever esse critério”, justificou.
Voto de Minerva caberá a Toffoli
Caso Gilmar de fato volte a sua posição de 2009 e vote para que a prisão só seja possível após o trânsito em julgado, o julgamento será decidido por Toffoli, último a votar por ser o presidente da Corte.
Toffoli não era ainda ministro do STF no julgamento de 2009. Em fevereiro de 2016, na análise do habeas corpus, ele votou autorizando a prisão após segunda instância. Porém, meses depois, no julgamento liminar das ações declaratórias de constitucionalidade, o ministro adotou uma postura inovadora e passou a defender que a prisão fosse permitida após decisão do STJ – proposta que não entusiasmou outros ministros e é alvo de críticas de juristas dos dois lados do debate.
Agora, há expectativa de que Toffoli partirá para uma terceira posição, desempatando o julgamento a favor da execução da pena apenas após o fim do processo. Foi essa impressão que o ministro causou em um comitiva de 12 senadores que lhe visitou na terça para pressionar pela manutenção da prisão após condenação em segunda instância. Os parlamentares entregarem ao presidente do STF uma carta com assinaturas de 43 senadores apoiando essa posição.
“Resumo da reunião que acabamos de ter com o presidente do STF: o sentimento que tivemos é que o STF irá votar pelo aguardo do trânsito em julgado, derrubando, assim, a prisão em segunda instância”, disse o senador Marcol do Val (Podemos-ES), em suas redes sociais, após o encontro.
Se esse cenário se confirmar, os parlamentares que defendem a prisão antecipada prometem brigar no Congresso para mudar a atual legislação.
“O Ministro Dias Toffoli disse que as razões não guardam relação com cláusula pétrea (artigos da Constituição que não podem ser alterados pelo Parlamento). Portanto, caberá ao Congresso a alteração no Código Penal ou na própria Constituição Federal”, afirmou ainda o parlamentar.
Na semana passada, Toffoli também enviou ofícios aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), sugerindo que avaliem a pertinência de alterar a lei para que os recursos ao STF e STJ não sejam mais contabilizados no cálculo da prescrição (quando termina o prazo de punição) de crimes.
Para Gustavo Badaró, da USP, a iniciativa reforçou a expectativa de que o Supremo vai proibir a prisão antecipada, pois pareceu uma tentativa de neutralizar as críticas de o cumprimento da pena apenas depois do trânsito em julgado estimula o uso de recursos protelatórios pela defesa.