Por: Agência O Globo – Há dois anos fazendo mestrado nos Estados Unidos, Renata desistiu de passar o fim de ano no Brasil temendo não conseguir voltar. A jovem, que conversou com O Globo sob condição de anonimato, é uma dentre diversos estudantes brasileiros que estão apreensivos com o retorno de Donald Trump à Casa Branca.
Para além da retórica anti- imigração do presidente eleito, que prometeu promover a maior deportação em massa da História, a preocupação da brasileira surge no momento em que diversas universidades americanas emitem alertas orientando alunos estrangeiros a regressarem das férias de inverno antes de o magnata tomar posse, em 20 de janeiro.
“Decidi ficar nos EUA porque não sei como será depois para voltar e terminar a minha tese”, conta ela, que está no país com visto de estudante. — Estou quase me formando e não quero arriscar a sair daqui e não conseguir voltar.
Os EUA são o principal destino de estudantes internacionais no mundo, com mais de 1 milhão de estrangeiros no ensino superior.
Além do grupo — que inclui pessoas que podem ou não continuar no país depois de concluir o curso —, há 408 mil imigrantes sem documentos matriculados no nível superior, a maioria (45%) hispânicos, segundo o portal Higher Ed Immigration.
Estima-se que 41 mil brasileiros estejam matriculados em instituições de ensino americanas. Apenas em 2023, 16 mil foram para os EUA estudar em uma universidade, a nona nacionalidade mais expressiva no nível superior do país. Ao todo, o Ministério das Relações Exteriores aponta que 1,9 milhão de brasileiros morem nos Estados Unidos, dos quais 230 mil estão em situação irregular.
Déjà vu de 2017
No estado de Massachusetts, instituições como o Instituto de Tecnologia (MIT) e a Universidade Amherst (UMass) estão entre as que emitiram alertas sobre viagens aos estudantes internacionais após a vitória de Trump.
Em um comunicado, a UMass lembrou que, em seu primeiro governo, o republicano proibiu a entrada de determinadas nacionalidades logo após tomar posse. Por isso, a instituição autorizou alunos estrangeiros que moram no campus a retornar aos seus dormitórios mais cedo.
O alerta faz referência a um decreto assinado pelo magnata na primeira semana do primeiro mandato, em 2017, que vetou cidadãos de sete países predominantemente muçulmanos, além de norte-coreanos, de ingressarem nos EUA. Após a campanha deste ano ter sido novamente pautada no discurso anti-imigração, especialmente contra latinos, o temor é de que algo parecido aconteça em janeiro.
Para a farmacêutica Ana Paula Mesquita, que faz doutorado na Universidade Estadual do Oregon (OSU), a grande incerteza é saber como estarão as políticas migratórias quando ela se formar. Esta semana, a OSU enviou um e-mail aos alunos estrangeiros orientando quem planeja viajar no fim do ano a se certificar de que está com toda a documentação em dia.
“Eu estudo em um programa bem internacional e o clima durante as eleições já era de dúvida, ainda mais para pós-doutorandos cujos contratos estão perto de acabar. Tenho um colega iraniano que fez doutorado nos EUA em 2017 e, um pouco antes de começar o curso, Trump bloqueou [cidadãos de] países do Oriente Médio. Ele perdeu um semestre inteiro de aula por isso”, conta, acrescentando temer também o “dia seguinte”.
“Depois de formada, eu gostaria de trabalhar com pesquisa e desenvolvimento na indústria daqui, mas já não é fácil conseguir empresas que estejam dispostas a patrocinar trabalhadores estrangeiros e o medo é de que fique ainda mais difícil”.
Cortes de gastos
Para além de Trump, seu futuro Gabinete também assusta. A farmacêutica acredita que a indicação de Robert Kennedy Jr. para o Departamento de Saúde — responsável por administrar os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), principal órgão de fomento à pesquisa nos EUA — também pode impactar estudantes como ela. “O medo é haver corte de gastos e falta de fundos para pesquisa, o que pode afetar muitos pesquisadores internacionais que são pagos com bolsas de estudo que os laboratórios acadêmicos recebem [do governo federal] para financiar projetos”.
Na avaliação de Lucas de Souza, analista político e professor da Universidade Temple, na Pensilvânia, o fator financeiro deve ser a principal arma de Trump contra a academia, mais até do que eventuais restrições a vistos de estudante. Segundo ele, é possível que a nova administração imponha entraves a programas considerados “mais subversivos”, ao mesmo tempo em que estudantes estrangeiros devem ter maior receio em participar de protestos — como os que tomaram o país este ano em repúdio à guerra em Gaza.
“Universidades que dão mais espaço a temas que não são alinhados ao governo Trump sofrerão para regulamentar seus programas junto ao governo federal daqui em diante”, pontua. “Isso também impacta certas áreas do conhecimento. Washington vai utilizar dos meios que tem para privilegiar áreas específicas, como ciências exatas e tecnologia, em detrimento de cursos como Ciência Política, História, Literatura, que são vistos pelos republicanos como laboratórios da esquerda”.
Embora o republicano ainda não tenha assumido oficialmente o cargo, a auto-censura já vem sendo adotada.
“Eu trabalho em uma publicação para estudantes latinos dentro da universidade e nós sempre tivemos muita liberdade para falar o que quiser”, diz Renata. “Quando Trump ganhou, uma das editoras estava escrevendo sobre a perspectiva dela como filha de imigrantes mexicanos e a gente ainda não tinha publicado o texto. Ela precisou fazer várias alterações, a pedido do editor-chefe, depois da vitória dele. Não porque ele não concordava com o que estava escrito, mas porque como a publicação é bancada pela universidade, a gente está precisando ter mais cuidado com o que fala”.
Fuga de cérebros
Mesmo brasileiros com dupla cidadania estão receosos com as políticas migratórias que podem ser adotadas pelo republicano. É o caso de Natalie Afonso, estudante de Psicologia na Universidade Simmons, em Boston. Filha de imigrantes irregulares, ela teme ter os estudos interrompidos. “Eu tenho muito medo, porque ele já ameaçou tirar a cidadania de filhos de imigrantes irregulares, mesmo que tenham nascido nos EUA. E eu sou um deles”.
O advogado especialista em migração Gustavo Nicolau, no entanto, considera os alertas um certo exagero. Embora reconheça a possibilidade de, sob o governo do republicano, o processo de concessão de visto ser mais rígido, Nicolau lembra que também é do seu interesse continuar atraindo cérebros do mundo inteiro.
“Para quem é imigrante em situação irregular, eu também não recomendo deixar o país. Mas não teria medo algum se fosse um brasileiro com visto de estudante. Talvez haja um escrutínio maior para futuros estudantes que pedirão visto, mas isso é natural quando muda o governo”, destaca. “Se Trump tomar uma medida contra um estudante regularizado em solo americano, trará uma insegurança jurídica muito grande e mexeria com o orçamento das universidades americanas. Em algumas, alunos estrangeiros podem representar até 70% da receita em níveis de mestrado e doutorado, além de serem responsáveis por uma enorme porcentagem das pesquisas americanas”.
Na contramão do discurso linha-dura, Trump sugeriu, em entrevista a um podcast em junho, que estudantes que se formam nos EUA deveriam obter “automaticamente” o green card, visto de residência permanente, para continuar no país. Na ocasião, Trump disse que conhece histórias “de pessoas que se formaram em uma grande universidade” americana e querem “desesperadamente ficar” nos EUA, mas não conseguem.
“Tinham um plano de negócio, um conceito, e não podem: voltam para a Índia, para a China, e fazem o mesmo negócio nesses países e se tornam multimilionários, empregando milhares e milhares de pessoas. E isso poderia ter sido feito aqui”, afirmou o presidente eleito.
Segundo Souza, se os EUA fecharem as portas, outras se abrirão: “Toda a verborragia que existe hoje contra a China, por exemplo, que é o país com o maior número de estudantes estrangeiros nos EUA, faz com que esses cérebros cogitem outros lugares para desenvolver suas pesquisas diante da hostilidade de Trump — explica o professor. — Hoje a situação é muito diferente da Guerra Fria. Esses cérebros estão recebendo acolhimento em outros locais: há um Sul Global pujante, boas condições no mundo árabe. Isso afeta a economia dos EUA.”