
Washington — O impasse orçamentário nos Estados Unidos ganhou contornos dramáticos nesta quarta-feira (5), quando o fechamento parcial do governo federal, iniciado em 1º de outubro, completou 36 dias e superou o recorde anterior de 35 dias, estabelecido durante o primeiro mandato de Donald Trump, em 2018-2019. A paralisação, motivada pela recusa democrata em aprovar um orçamento sem a prorrogação de créditos fiscais da era Biden para planos de saúde acessíveis, expõe as fraturas profundas no Congresso e ameaça milhões de americanos com a interrupção de serviços essenciais.
O que começou como uma disputa técnica sobre financiamentos emergentes evoluiu para um confronto ideológico de proporções inéditas. Republicanos, liderados pelo presidente Trump, insistem em um pacote de continuidade orçamentária “limpo”, sem concessões aos democratas, que por sua vez condicionam o acordo à manutenção de subsídios do Affordable Care Act (ACA), prestes a expirar no fim de 2025. “Os democratas radicais de esquerda podem acabar com isso agora, mas preferem manter o país refém por agendas falidas”, disparou Trump em postagem na Truth Social na terça-feira (4), ecoando sua retórica habitual de confronto.
A Casa Branca, no entanto, recuou parcialmente ao confirmar, em audiência judicial, o uso de um fundo de contingência de US$ 4,65 bilhões para distribuir benefícios reduzidos do Programa de Assistência Nutricional Suplementar (SNAP) em novembro — uma medida ordenada por juízes federais em Rhode Island e Massachusetts, após ações movidas por mais de 25 estados.
Essa guinada administrativa, no entanto, não aplacou as tensões. Trump havia sinalizado na segunda-feira (3) que os pagamentos integrais do SNAP, vital para 42 milhões de beneficiários — majoritariamente famílias de baixa renda, com 39% das vagas ocupadas por crianças —, só seriam liberados após o fim da paralisação. “Apenas quando os democratas abrirem o governo, o que podem fazer facilmente — e não antes!”, escreveu o presidente, atribuindo o inchaço do programa a “bilhões e bilhões” gastos na era Biden.
A secretária do Trabalho, Lori Chavez-DeRemer, agravou o alerta ao anunciar que auxílios-desemprego também correm risco de não serem pagos, ampliando o escopo da crise para além da alimentação.
Os impactos econômicos e humanos se acumulam com velocidade alarmante. Cerca de 1,4 milhão de funcionários federais permanecem sem salários há mais de um mês, com aqueles em funções “essenciais” — como controladores de tráfego aéreo e agentes da TSA — forçados a trabalhar sem remuneração garantida. Atrasos em voos se multiplicaram nos últimos dias, com relatos de filas recordes em aeroportos como os de Nova York e Los Angeles, segundo a Administração Federal de Aviação (FAA).
Programas sociais sofrem ainda mais: o Head Start, que atende 58 mil crianças em creches pré-escolares, viu 134 centros em 41 estados e Porto Rico paralisados por falta de verbas, enquanto bancos de alimentos em Washington e outras capitais registram filas dobradas, conforme dados da Feeding America. No front econômico, o Escritório de Orçamento do Congresso (CBO) estima prejuízos iniciais de US$ 3 bilhões — equivalentes a 0,02% do PIB —, mas analistas preveem escalada para bilhões adicionais se o impasse persistir. Trump, que supervisiona o segundo shutdown mais longo de sua gestão, minimizou os efeitos em recente viagem à Ásia, onde priorizou encontros bilaterais com líderes como Xi Jinping, da China. “Isso é algo que deveria ser bipartidário”, comentou ele a bordo do Air Force One, em tom que contrasta com sua postura inicial de desengajamento das negociações. O vice-presidente JD Vance reforçou a linha dura em coletiva de imprensa: “Não negociaremos sob ameaça de reféns”, referindo-se aos cortes propostos pelo Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), que visam rescisões permanentes em programas federais.
Enquanto isso, o líder da maioria no Senado, John Thune (republicano por Dakota do Sul), expressou “otimismo cauteloso” quanto a um acordo ainda esta semana, impulsionado pelo peso simbólico do recorde quebrado. Um grupo bipartidário no Senado sinaliza movimentos iniciais para uma resolução temporária de três semanas, similar à que encerrou o shutdown de 2019. No entanto, com as eleições de meio de mandato de 2026 no horizonte, o cálculo político domina: democratas veem na paralisação uma oportunidade para mobilizar eleitores contra os republicanos, enquanto Trump aposta na pressão pública para forçar concessões.
Especialistas em governança, como o historiador presidencial Michael Beschloss, alertam para os precedentes perigosos. “Dois dos shutdowns mais longos sob o mesmo presidente marcam não só um recorde, mas um risco à estabilidade institucional”, observou ele em entrevista à NBC News.
Bancos de alimentos e ONGs como o Capital Area Food Bank já se preparam para o pior, com estoques no limite e doações em alta. Para os milhões afetados — de famílias em risco de fome a servidores públicos endividados —, o debate em Washington soa distante, um lembrete cruel de como o partidarismo pode paralisar uma nação inteira. A situação evolui rapidamente, com novas votações no Congresso previstas para esta quinta-feira (6). Atualizações serão publicadas conforme os desdobramentos.


