
Boston, 06 de Novembro de 2025–
Em um dia simbólico para a democracia norte-americana, 4 de novembro de 2025, data das eleições municiais em Boston, Massachusetts, agentes da Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE, na sigla em inglês) efetuaram uma operação que mostrou como um eco de autoritarismo em pleno coração de Boston. No bairro de Allston-Brighton, o Allston Car Wash, na Cambridge Street, tornou-se palco de uma intervenção federal que deteve nove trabalhadores imigrantes – todos guatemaltecos e salvadorenhos, conforme relatos de testemunhas e ativistas locais. A ação, descrita por autoridades municipais como um “sequestro puro e simples”, não apenas interrompeu o labor cotidiano de famílias laboriosas, mas reacendeu o clamor por uma reforma migratória que, há décadas, é adiada por sucessivos governos, democratas e republicanos, em uma cumplicidade que beira o cinismo político.
O episódio, o maior raid (Blitz) registrado no bairro neste ano, desenrolou-se por volta das 10h30, em meio ao vaivém matinal de clientes. Vídeos circulantes nas redes sociais capturaram a cena com crueza: cerca de dez agentes mascarados, vestindo coletes com a inscrição “Police” e armados, algemaram um grupo de cinco funcionários que limpavam o interior de um automóvel. “Um minuto eu observava-os finalizar meu carro; no seguinte, quatro a seis veículos surgiram, e agentes com coletes ‘Police’, armas e máscaras detiveram todos que trabalhavam nele imediatamente”, relatou Joel D. Estrada, proprietário do veículo e testemunha ocular, em declaração ao Harvard Crimson. Os detidos, segundo o gerente do estabelecimento – que preferiu anonimato por temor de represálias –, incluíam indivíduos com green cards ou vistos válidos, mas foram impedidos de recuperar seus documentos de permissões de trabalho dos armários no local. “Alguns deixaram suas propriedades, seus permisos de trabalho aqui. Eu poderia levá-los e libertá-los. Mas não sei onde estão”, desabafou o gestor ao The Boston Globe, descrevendo um aparato impressionante: cerca de 17 veículos federais, incluindo um blindado.
Mike Delaney, co-proprietário do lava-rápido, confirmou a detenção de nove imigrantes – oito dos 22 funcionários em turno na manhã de terça-feira –, todos sem histórico criminal conhecido. “Nossa principal preocupação são os funcionários detidos”, afirmou Delaney à WGBH, mostrando um receio de “agitar o vespeiro” que paira sobre comunidades imigrantes. O estabelecimento parou suas operações pelo resto do dia, deixando um vazio que se estendeu à angústia das famílias. Voluntários da Rede de Justiça Imigrante LUCE, de Massachusetts, informaram que pelo menos alguns dos detidos foram transferidos para um centro de detenção do ICE em Burlington, embora suas identidades e localizações exatas permaneçam sigilosas, em uma opacidade que agrava o sofrimento humano.
A repercussão foi imediata e visceral. Liz Breadon, vereadora de Allston-Brighton no Conselho Municipal de Boston, chegou ao local às 10h45, alertada por moradores, e qualificou a operação como “um capítulo horrível na perseguição ilegal e vingativa de Boston pelo ICE e pela administração Trump”. “Eles todos tinham documentação, seja green card, autorização de trabalho ou o que for, mas não lhes permitiram buscar seus papéis”, denunciou Breadon, que coordena esforços com senadores Elizabeth Warren e Ed Markey, além da deputada Ayanna Pressley, para conectar famílias a grupos de auxílio jurídico.
Markey, em comunicado, fustigou a “crueldade como objetivo” da Casa Branca, prometendo respostas e solidariedade aos vizinhos. William N. Brownsberger, senador estadual, visitou o local na quarta-feira e observou um “fluxo de assistência” da comunidade, que se mobilizou em solidariedade.
Essa incursão não é isolada: integra-se a uma operação de semanas em Massachusetts, que, segundo o ICE, resultou em mais de 1.400 apreensões no mês anterior, das quais 600 envolviam condenações criminais ou mandados pendentes. No entanto, o silêncio do Departamento de Segurança Interna (DHS) e do ICE ante pedidos de esclarecimentos – sobre acusações, destinos e legalidade – reforça a percepção de um aparato estatal que opera na penumbra, priorizando o espetáculo da força sobre o devido processo.
Nicolasa Lopez, imigrante e ativista que contatou famílias dos detidos, resume a indignação: “Essas pessoas foram arrancadas do lugar de trabalho que conhecem. São retratadas como criminosos e tratadas como tal. Precisamos proteger nossas famílias.”
O que torna essa tragédia particularmente lacerante é sua raiz sistêmica: um arcabouço migratório obsoleto, forjado em 1986 e intocado desde então, que condena milhões a uma existência precária, cientes dos riscos que assumem ao cruzar fronteiras em busca de refúgio e oportunidade. Imigrantes como os do Allston Car Wash – laboriosos, integrados, contribuintes invisíveis da economia americana – navegam em um limbo jurídico onde uma permissão de trabalho efêmera não basta para blindá-los contra a arbitrariedade federal. Eles sabem, sim, dos perigos; aceitam-nos como preço de uma aspiração legítima. Mas cabe à sociedade anfitriã, não aos vulneráveis, arcar com o ônus moral de um sistema que os criminaliza por sua mera presença.
Essa falha não é monopólio partidário. Democratas e republicanos, em sucessivas encarnações, revelaram-se cúmplices na inércia.
Sob Barack Obama, que assumiu a Casa Branca em 2009 com maiorias democratas nas duas casas do Congresso – uma janela de oportunidade inédita –, a reforma abrangente foi postergada em favor de estímulos econômicos e a Lei de Cuidados de Saúde Acessíveis. Somente em 2010, uma Câmara dominada por democratas aprovou o DREAM Act, destinado a proteger jovens indocumentados; filibusterado no Senado democrata, o projeto sucumbiu à procrastinação.
Obama, apelidado de “deportador-em-chefe” por defensores dos direitos imigrantes, presidiu centenas de milhares de remoções, erodindo a credibilidade para uma legislação bipartidária que só emergiria em 2013, no Senado, para morrer na Câmara republicana.
Republicanos, por sua vez, sabotaram tentativas subsequentes: o colapso de 2014, sob John Boehner, e a rejeição de pacotes em 2018, sob Paul Ryan, ilustraram uma polarização que Trump explorou com maestria, transformando a imigração em moeda eleitoral.
Mais de duas décadas de fracassos – de George W. Bush a Joe Biden – deixam um saldo de 11 milhões de indocumentados em ostensivo limbo, reféns de ações executivas volúveis e raids que aterrorizam bairros inteiros. Urge, pois, uma reforma integral: caminhos à cidadania para os indocumentados de boa-fé, expansão de vistos para trabalhadores essenciais, fortalecimento de fronteiras sem a barbárie da separação familiar, e um sistema de asilo ágil e humano. Congressistas de ambos os partidos devem abandonar o cálculo eleitoral e honrar o ideal americano de nação de imigrantes. Caso contrário, episódios como o de Boston não serão meras anomalias, mas o retrato fiel de uma democracia que, em sua hipocrisia, devora os sonhos que prometeu acolher.


