
Nos dias atuais, é comum observarmos que muitas pessoas não prestam atenção plena ao que os outros dizem. Em vez de absorver a mensagem na sua integridade, elas tendem a reinterpretá-la rapidamente, impondo um sentido próprio baseado em emoções, preconceitos ou experiências pessoais. Isso leva a reações precipitadas e conflituosas, em vez de um diálogo construtivo.
Um exemplo clássico ilustra bem isso: imagine alguém dizendo: “Amanhã não terei tempo, você poderia fazer o café?”. A intenção é clara — um pedido gentil, talvez por cansaço ou falta de disponibilidade. No entanto, a resposta pode ser defensiva: “Por que você quer que eu faça o café? Você não manda em mim!”. Aqui, o ouvinte focou em palavras isoladas como “você poderia” ou “fazer o café”, interpretando-as como uma ordem ou imposição, ignorando o contexto da frase completa e o tom provavelmente amigável.
Esse tipo de reação revela um problema comum: muitas pessoas ouvem as palavras, mas reagem emocionalmente, sem considerar a construção da frase, o contexto ou a intenção do falante. Elas prestam atenção apenas em fragmentos que desencadeiam gatilhos emocionais — como sensação de controle ou crítica —, e não no conjunto da mensagem. Isso pode ser agravado por limitações no vocabulário ou no raciocínio mais amplo, que dificultam a compreensão de nuances linguísticas, como pedidos indiretos, ironias ou expressões idiomáticas.
No fundo, o que ocorre é que o ouvinte está construindo ativamente um sentido para o que ouviu, em vez de tentar captar o sentido pretendido pelo emissor. Essa ideia esta relacionada com princípios do socioconstrutivismo (ou construtivismo social), inspirado em pensadores como Vygotsky e Piaget, que enfatizam que o conhecimento e o significado não são transmitidos passivamente, mas construídos pelo indivíduo por meio de interações sociais e experiências prévias. No contexto da comunicação, cada pessoa filtra a mensagem através de sua “zona de desenvolvimento proximal” — suas crenças, emoções e bagagem cultural —, criando uma interpretação pessoal.
Esse processo é natural e, em muitos casos, enriquecedor para o aprendizado. No entanto, o socioconstrutivismo torna-se prejudicial ao diálogo quando a construção de sentido é unilateral e rígida, ou seja, quando a pessoa impõe sua interpretação pessoal sem qualquer esforço para verificá-la ou alinhá-la com a do outro. Nesse cenário, o mecanismo que deveria ser colaborativo vira um obstáculo, gerando conflitos desnecessários e bloqueando a compreensão mútua.
Dois exemplos claros desse lado prejudicial:
- Elogio interpretado como sarcasmo: Alguém diz a um colega de trabalho: “Nossa, você arrasou nessa apresentação hoje!”. A intenção é genuína — um elogio sincero. Mas o ouvinte, que tem baixa autoestima ou experiências passadas de críticas disfarçadas, constrói imediatamente o sentido de que se trata de ironia ou deboche. Responde agressivamente: “Está zombando de mim, né? Sempre acha que eu faço tudo errado!”. O diálogo azeda sem necessidade, pois não houve tentativa de esclarecer a intenção.
- Comentário neutro visto como crítica pessoal: Uma mãe diz à filha adolescente: “Você passou o dia inteiro no celular de novo?”. A frase é apenas uma observação, talvez com preocupação leve pelo excesso de tela. Mas a filha, sensível a qualquer comentário sobre seus hábitos, interpreta como uma acusação de preguiça ou irresponsabilidade. Responde: “Para de me julgar o tempo todo! Você nunca me deixa em paz!”. Aqui, a construção rápida e emocional de sentido transforma uma preocupação em ataque, escalando para briga familiar.
Já a teoria crítica, associada à Escola de Frankfurt (como Habermas), pode complementar essa visão ao destacar como interpretações enviesadas refletem estruturas de poder, dominação ou alienação na sociedade. Em uma comunicação assimétrica — influenciada por hierarquias emocionais, culturais ou sociais —, o ouvinte pode projetar inseguranças ou resistências, transformando um pedido inocente em uma ameaça percebida. Habermas, por exemplo, defende uma “ação comunicativa” ideal, baseada em compreensão mútua e racionalidade, em oposição a reações instrumentais ou manipuladas.
Em resumo, esses mal-entendidos não são mera “falta de atenção”, mas resultado de um processo ativo de construção de sentido, que pode ser positivo (para o aprendizado) ou negativo (para as relações) — especialmente quando o socioconstrutivismo opera de forma ego-centrada. Para melhorar isso, práticas como a escuta ativa — ouvir com empatia, parafrasear o entendido e perguntar para confirmar — são essenciais. Elas promovem uma construção compartilhada do significado, reduzindo conflitos e fomentando diálogos mais ricos. No fim das contas, comunicar-se bem exige não só falar claro, mas escutar com abertura para co-construir o sentido, em vez de impor o próprio.


