Por: Agência O Globo – Desde que teve um ataque cardíaco há alguns anos, Ángel Ortiz Rodríguez depende de um respirador eletrônico para sobreviver. Morador de um bairro de Granada na Espanha, ele mantém um cilindro de oxigênio sempre a mão, por causa dos blecautes constantes que atingem o bairro onde mora com a mulher Rosa Martin Piñedo.
“Não podemos confiar de verdade na eletricidade aqui” explica Piñedo.
Quedas diárias no fornecimento de energia são rotina para 25 mil moradores do empobrecido distrito norte de Granada. A comida apodrece nas geladeiras e as baterias de celular caem, assim como os equipamentos médicos param de funcionar, causando problemas graves de saúde, dizem os médicos. Os blecautes tem sido parte da vida dos moradores locais por mais de uma década, mas têm se agravado nos últimos anos. A Endesa, a maior companhia de energia da Espanha, tem uma explicação inusitada. Segundo a empresa, a culpa é do aumento do número de plantações domésticas ilegais de maconha.
A companhia diz que os responsáveis pelo cultivo ilegal usam ligações irregulares ao sistema e provocam sobrecarga, por causa da iluminação intensa e do ar condicionado de que as plantas necessitam. Um alto funcionário da Endesa disse que, apenas no distrito norte da cidade, aproximadamente um terço da energia roubada estava relacionado com as plantações ilegais.
A polícia atribui o aumento da produção em parte a leis que considera ambíguas. A Espanha permite a produção e o consumo pessoal em pequena escala e aplica penas relativamente leves para quem viola as leis ao produzir em larga escala e se envolver com tráfico de drogas.
Os moradores reconhecem o número de plantações ilegais de maconha. Mas dizem que a insistência em destacar o papel da maconha — inclusive da mídia — deu às autoridades e à companhia de energia a desculpa perfeita para evitar os custosos reparos em uma rede que vem apresentando problemas há anos.
A percepção do papel da maconha nos blecautes se disseminou na Espanha. O maior jornal espanhol, o El País, publicou uma manchete este ano dizendo “maconha impõe sua lei no distrito norte de Granada”. Em outra, do jornal El Confidencial, se leu “maconha transforma Granada no paraíso dos ‘gatos’”.
Vários moradores frustrados processaram a Endesa por falhar em fornecer o abastecimento de energia de que precisam.
“As pessoas estão morrendo aqui porque não têm luz. Não se pode apenas apontar para a maconha e dizer ‘aqui está o culpado”, diz Manuel Martín García, defensor da cidadania de Granada.
Organizações de defesa dos direitos humanos locais dizem que pelo menos uma dúzia de outros distritos pobres da Espanha também foram afetados pelo duplo flagelo dos blecautes e da produção ilegal de maconha. Depois de um apagão de dois meses em 2020 num bairro devastado pela pobreza em Madrid, especialistas em direitos humanos da Onu fizeram um apelo ao governo espanhol para resolver o problema e criticaram as autoridades por atribuírem “as quedas de energia às plantações ilegais de maconha”.
“Eles me tiram a vida”
O problema parece ser mais grave em Granada, onde a Endesa identificou que o número de blecautes foi três vezes maior no ano passado, em comparação com 2017. A apenas 15 minutos do famoso palácio da Alhambra, o distrito norte de Granada é o mais pobre da cidade, com metade da população vivendo com menos de R$ 39 mil por ano. É um conjunto de bairros apertados onde emaranhados de cabos elétricos velhos se estendem pelas ruas, muito diferente da aparência elegante dos bairros do centro da cidade.
No bairro de La Paz, Joséfa Manzano Melgra lembra como uma vez ela dormiu na sala depois de cair durante um blecaute ao tentar ir ao banheiro. Com mais de 100 anos, ela quase não se move mais e depende de controles remotos para quase tudo, incluindo abrir as portas da casa. “Se não há eletricidade, eles me tiram a vida”, disse.
Informações coletadas por organizações de moradores revelam que as quedas de energia acontecem em média quase 100 vezes por mês no distrito norte de Granada. Algumas vezes, elas duram mais de 10 horas, como foi o caso em La Paz no início de fevereiro.
“As pessoas chegam ao meu consultório dizendo ‘não aguentamos mais”, conta a médica de família Marta García Caballos. Ela diz que alguns pacientes diabéticos às vezes não podem receber insulina porque os monitores de medição do açúcar no sangue ficam sem energia.
Uma pesquisa de 2021 da qual García é coautora apontou que os blecautes levaram a um aumento da mortalidade, inclusive devido ao risco maior de acidentes e envenenamento.
Embora pouco visível, a presença de cultivos domésticos de maconha é evidente na área. O cheiro característico da cannabis permeia muitas ruas. Vários edifícios degradados têm janelas emparedadas e aparelhos de ar condicionado ligados o dia todo, mesmo quando não está tão quente lá fora. (A planta cresce melhor sob temperaturas controladas e com luz artificial.) As autoridades espanholas dizem que, além das leis sobre drogas que consideram frouxas, o aumento da pobreza após a crise financeira da década de 2010 levou pessoas a recorrerem ao plantio.
“O tráfico de maconha estende-se como uma mancha verde por quase todos os municípios da província de Granada”, diz um relatório recente de autoridades regionais. Cerca de 430 mil pés de maconha foram apreendidos em Granada em 2021, quase três vezes mais do que no ano anterior.
José Manuel Revuelta, chefe de infraestruturas e redes da Endesa, disse que os produtores de maconha se conectam ilegalmente à rede, provocando a queima de fusíveis às vezes até 15 vezes por dia.
Os funcionários da Endesa participam regularmente de operações policiais para cortar ligações ilegais. Este ano, já ocorreram 18 ações. Mas um relatório da empresa observa que muitas vezes as plantações podem voltar a funcionar em poucas horas.
Os moradores aguardam a decisão do processo judicial contra a Endesa, que acusam de violar o seu direito à saúde, protegido pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Independente do resultado, alguns temem que seja tarde demais para botar o foco nas pessoas e não na maconha. No julgamento, Marta García Caballos disse que fez uma apresentação aos juízes sobre como os apagões prejudicam a saúde das pessoas, esperando perguntas sobre o assunto. “[Em vez disso] eles me perguntaram sobre maconha”, lembra ela.