JCEditores (Junot) – Nos Estados Unidos, um sistema de pontos usado pelo Serviço de Imigração e Alfândega (ICE) e pelo Departamento de Segurança Interna (DHS) está decidindo quem é deportado como suposto criminoso. O sistema não tem muitas perguntas apenas alguns ‘sinais’ são necessários, uma tatuagem, um par de tênis caros ou um emoji nas redes sociais pode ser o suficiente para marcar alguém como integrante de uma gangue como o Tren de Aragua ou a MS-13.
Essa reportagem produzida pelo JSNEWs é um alerta frio e direto sobre como estereótipos —linguagem, sotaques, tatuagens, roupas, postagens online — estão sendo usados como evidências em um processo que pode mandar qualquer um para uma prisão como o Cecot, em El Salvador. O caso de Andry Hernández, um venezuelano deportado em março de 2025, é um exemplo do que está acontecendo hoje nos Estados Unidos, de como de um sistema transforma traços comuns em sentenças criminais.
Como Funciona o Sistema de Pontos

O sistema de pontos é uma ferramenta administrativa que classifica imigrantes detidos com base em características que, segundo as autoridades, sugerem ligação com gangues. Ele usa formulários que atribuem pontuações a detalhes do cotidiano, mas esses critérios são tão amplos que qualquer um pode ser enquadrado.
Formulário de Validação de Membros de Grupos Perigosos – O primeiro formulário, chamado “Validación/Confirmación de Miembro de Grupo que Amenaza la Seguridad”, é aplicado por agentes do ICE ou por empresas privadas como a CoreCivic, que gerenciam centros de detenção e é um tipo de lista de verificação:
- Tatuagens: Um desenho que pareça “suspeito” — como coroas, estrelas ou números — vale 4 ou 5 pontos.
- Roupas: Tênis de marca, joias ou “roupas urbanas de alta qualidade” podem render 4 pontos.
- Redes sociais: Gestos de mão, emojis ou postagens que lembrem algo associado a gangues adicionam 2 ou 3 pontos.
- Comportamento: A forma como alguém fala, anda ou interage pode somar 2 ou 3 pontos.
Se a pontuação chegar a 8 pontos ou mais, a pessoa é classificada como “membro confirmado” de uma gangue. Menos que isso? Ainda é “suspeito”. Não há opção para “sem ligação”. No caso de Andry Hernández, tatuagens de coroas, com as palavras “mom” e “dad”, renderam 5 pontos. Ele foi marcado como suspeito e deportado, sem outros registros ou evidências.
Um segundo formulário, identificado pela União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), é ainda mais abrangente. Chamado “Guía de Validación de Enemigos Extranjeros”, ele é vinculado à Lei de Inimigos Estrangeiros de 1798 e dá pontos por:
- Tatuagens que sugiram afiliação a gangues (4 pontos).
- Acessórios ou roupas, como tênis caros ou “estilo urbano” (4 pontos).
- Postagens nas redes sociais com símbolos, gestos ou até emojis (2 ou 3 pontos).
- Denúncias, mesmo anônimas, ou menções em relatórios policiais (pontuação variável).
Com 8 pontos, a pessoa é considerada membro de uma gangue. Abaixo disso, permanece suspeita. Esse formulário amplia o alcance do sistema, capturando pessoas com base em traços culturais ou escolhas pessoais que nada têm a ver com crime.
O Caso de Andry Hernández
Andry Hernández, um venezuelano de 31 anos, chegou aos EUA em 2022 e foi detido em um centro de imigração em Louisiana. Em março de 2025, foi deportado para o Cecot, em El Salvador, após ser classificado como suspeito de integrar o Tren de Aragua. A “prova”? Tatuagens de coroas feitas em homenagem a uma festa religiosa em sua cidade natal.
Essas tatuagens somaram 5 pontos no primeiro formulário, o suficiente para justificar sua deportação. Não havia antecedentes criminais, testemunhas ou outras evidências. Este caso mostra como o sistema opera: um detalhe comum, como uma tatuagem, pode ser transformado em motivo para expulsão.
A Base Legal
O sistema de pontos não funciona sozinho. Ele é sustentado por uma lei de mais de dois séculos e por políticas migratórias atuais que dão ao governo um alcance enorme. Promulgada em 1798 a Lei de Inimigos Estrangeiros, permite ao presidente deter ou deportar “inimigos estrangeiros” sem processo judicial. Em 2025, a administração atual usou a designação do Tren de Aragua como “organização terrorista estrangeira” para ativar essa lei, facilitando deportações rápidas. No caso de Hernández, isso significou ser enviado ao Cecot sem chance de contestar a acusação.
O Sistema Pode Ser Reutilizado? Sim – o sistema de pontos é uma ferramenta flexível, projetada para ser usada repetidamente. Vários fatores sugerem que ele continuará ativo:
- Base Legal Sólida: A Lei de Inimigos Estrangeiros dá ao governo poder quase ilimitado para deportar, e a classificação do Tren de Aragua como terrorista pode ser renovada ou aplicada a outros grupos.
- Parcerias Internacionais: Acordos com países como El Salvador, que aceita deportados em troca de benefícios, facilitam a continuidade do sistema. Outros países podem seguir o mesmo caminho.
- Critérios Adaptáveis: Tatuagens, roupas e postagens são critérios tão vagos que podem ser usados contra qualquer grupo de imigrantes, ampliando o alcance do sistema.
- Clima Político: A ênfase em segurança e controle migratório cria um ambiente favorável para manter e expandir essas práticas.
O Alerta: Quando Estereótipos Viram Evidências

O sistema de pontos transforma estereótipos em provas. Tatuagens, comuns em muitas culturas, são vistas como marcas de crime. Roupas urbanas, usadas por milhões, viram sinal de perigo. Um emoji ou gesto nas redes sociais pode custar a liberdade. Esses elementos, parte da vida cotidiana, estão sendo usados para justificar deportações para prisões como o Cecot, onde as condições são amplamente questionadas.
O caso de Andry Hernández ilustra o risco. Suas tatuagens, um traço pessoal, foram suficientes para marcá-lo como suspeito. Outros imigrantes enfrentam o mesmo perigo: um detalhe banal pode ser interpretado como prova de afiliação a uma gangue.
Um agente pode ver uma coroa tatuada e decidir que é um símbolo criminoso. Um par de tênis caros pode ser confundido com “estilo de gangue”. Um post nas redes sociais, tirado do contexto, pode somar pontos. Esses critérios não exigem provas concretas, como condenações ou testemunhas, e a falta de recursos legais deixa os acusados sem defesa.
O que isso significa: O sistema de pontos é um mecanismo que transforma traços comuns em riscos e pode continuar capturando pessoas com base em estereótipos. Essa reportagem não toma partido ou busca empatia com causas. Ele apresenta os fatos: tatuagens, roupas e postagens estão sendo usados como passaportes para a deportação. O caso de Hernández é um exemplo e haverá mais se o sistema persistir.
O alerta é claro: quando estereótipos viram evidências, qualquer um pode ser o próximo.
Provocação: Um Exemplo Brasileiro que Escancara o Perigo dos Símbolos
No Brasil, a lógica dos símbolos também mata. Em Salvador, Bahia, em janeiro de 2024, Allisson Cerqueira Nascimento, um ambulante de 18 anos, foi espancado até a morte por membros do Bonde do Maluco (BDM). O motivo? Ele usava uma camiseta com o desenho do Mickey Mouse, associado à facção rival A Tropa, em uma área dominada pelo BDM. Allisson não tinha qualquer ligação com criminosos, mas a estampa foi suficiente para selar seu destino.
Gestos, cortes de cabelo e até formas de falar também são armadilhas. Em áreas controladas pelo Comando Vermelho (CV), levantar dois dedos em uma foto, imitando o “paz e amor”, pode ser visto como apoio à facção. Já três dedos, comuns entre roqueiros, são ligados ao Primeiro Comando da Capital (PCC) ou ao BDM. Cortes de cabelo com dois ou três riscos na sobrancelha, antes uma moda, agora são códigos de identificação. Até o sotaque ou gírias locais podem ser mal interpretados em territórios disputados. Em 2024, pelo menos seis pessoas foram assassinadas na Bahia por exibirem gestos ou símbolos associados a facções, segundo a imprensa local.
Para jovens, a vontade de parecer transgressor, adotando estilos “da quebrada” ou postando poses “ousadas” nas redes, pode acabar em tragédia. Em regiões dominadas, onde facções como o PCC, CV ou Tribos de Israel impõem suas regras, um detalhe banal vira sentença de morte — pior que qualquer prisão.
Você sabe o que sua roupa ou gesto significa onde você está?
Referencias:
Tattoos, flyers and deleted photos: The limited evidence the Trump administration is using to try to deport migrants;
DHS Lawsuit Impact: ACLU Drops Case Against Deportation;
American Civil Liberties Union (ACLU) Official Site;
Judge allows University of South Carolina PhD student more time to fight deportation;
Postagens no X: A postagem do @dogeai_gov;