BBC – Com menos de 3% da população mundial, o Brasil responde hoje por um quinto das novas mortes causadas pelo novo coronavírus no mundo.
Do total de mortes por coronavírus no mundo na semana passada (33.808), segundo dados do Centro Europeu de Prevenção e Controle das Doenças, 20,7%, ocorreram no Brasil. Foram 7.007 novas mortes registradas.
O índice é semelhante ao da Ásia, que respondeu por 19% das novas mortes na semana passada, e ao da América do Norte, com Estados Unidos e Canadá, responsáveis por 18%. Já a Europa respondeu por 9% e, a África, 4%.
As semanas consideradas para análise começam aos domingos e terminam aos sábados – o último, no dia 27 de junho.
Somando os dados do Brasil aos da América Latina e do Caribe, conclui-se que a região responde por quase a metade, ou 49,1%, dos novos óbitos semanais pela covid-19 no mundo (16.625 na semana passada). A região é considerada o novo epicentro da pandemia, e tem tido um aumento acentuado em casos.
Nos dados analisados, a América Latina refere-se a todos os países abaixo do México, incluindo países não hispânicos, como a Guiana Francesa e o Suriname.
Hoje, Brasil e México, os mais populosos da região, são também os países com maior número de infecções e mortes.
‘Cada lugar terá sua vez’
No caso do Brasil, é a sexta semana seguida em que o país se mantém em um patamar acima de 20% em relação ao total de mortes semanais em todas as outras regiões, sendo que na primeira semana de junho chegou a responder por 25%, ou um quarto do total de novas mortes no mundo.
Da segunda à última semana de maio, o país pulou de 10% a 20% das novas mortes semanais por covid-19 em comparação com o resto mundo.
A covid-19, doença causada pelo coronavírus, já matou mais de meio milhão de pessoas no mundo inteiro. O total de mortes no Brasil chegou a 58.314. O de infecções, 1,3 milhão. “Qualquer lugar é um lugar fértil para o vírus se espalhar. Alguns países foram bem-sucedidos em fechar tudo e não permitir que se espalhasse pela comunidade, mas enquanto não tivermos uma vacina, o vírus fará o que as doenças respiratórias fazem. Cada lugar terá sua vez”, diz Rafael Meza, professor associado de epidemiologia e saúde global da Universidade de Michigan.
“Primeiro, foi a China e depois a Europa quem respondia pela maioria dos casos e mortes. Depois, a América do Norte e, agora, a América Latina. O crescimento de casos na América Latina coincide com o decréscimo de casos em outras regiões, onde a epidemia chegou antes.”
Os dados mostram que do fim de fevereiro para o começo de março, a Europa passou de 3,9% de novos óbitos semanais em relação ao resto do mundo (naquela época, todo o restante era só na Ásia) para 33,9%, e, na segunda semana de março, para 67,8%.
O número chegou a atingir 81,1% (quando o Brasil ainda representava 0,5%) e foi regredindo, dando espaço para a América do Norte, que em seu ponto mais alto atingiu 38,4%, na última semana de abril.
“Outras regiões podem ser as próximas, e algumas das regiões que já tiverem tido suas ‘primeiras ondas’ podem ver segundas ondas, então esses números e rankings ainda deve mudar.”
Para Meza, o lado positivo é que, em geral, não houve surtos explosivos na América Latina como os que aconteceram na Itália, que saturaram o sistema – embora, no Equador e em regiões do Brasil, sistemas de saúde tenham sido saturados. O número de casos e mortes cresceu na região, mas de forma mais lenta que na Europa.
Em países como o Peru, o Chile, o México e a Colômbia, houve um crescimento progressivo no número de casos, mas inicialmente administrável, segundo ele. “Isso resultou em um longo e constante surto, e pode ser que, por isso, demore para que vejamos seu declínio.”
No Brasil, a subida de casos foi mais lenta que nos Estados Unidos, e a curva de inclinação foi menor que de vários países da Europa, observa Marília Sá Carvalho, pesquisadora da Fiocruz. “Chegamos a um certo platô”, diz ela, ainda que um platô alto.
Mas não saberemos como cada país ou região foi atingido pela pandemia em relação aos outros até que a pandemia finalmente acabe, diz Meza.
Para entender como chegamos até aqui, é preciso voltar no tempo.
Pandemia na América do Sul
O primeiro paciente diagnosticado com coronavírus na América Latina foi no dia 26 de fevereiro, no Brasil. Antes disso houve “tempo hábil para tentar evitar que nossa curva fosse tão ascendente quanto tem sido”, diz a epidemiologista e bióloga Edlaine Vilela, professora de epidemiologia da Universidade Federal de Jataí, no Estado de Goiás.
Ela coordena o projeto brasileiro do International Citizen Project Covid-19 (ICPCovid), um consórcio internacional formado por 20 países que investiga como a população local responde às medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por autoridades locais para controlar o coronavírus.
O segundo país da região a registrar um caso foi o México, dois dias depois do Brasil. Foi o tempo para que alguns países adotassem medidas de restrição da circulação do vírus – mas nem todas as regiões adotaram quarentenas ou restrições eficazes.
Apesar de começar mais tarde na América do Sul, a região está nesse quadro “difícil”, segundo Sá Carvalho, em parte porque não foi controlada no Brasil, “que é o maior país da região, e por consequência já teria mais casos, e pouco fez para controlar o vírus”.
Além disso, países latino-americanos que começaram bem em suas respostas à pandemia hoje veem um aumento de infecções. É o caso do Chile, que decretou quarentenas no início e fortaleceu os testes no país, mas que hoje vê um expressivo aumento nas taxas de infecção pelo vírus.
Um dos primeiros e piores surtos na América Latina foi no Equador, onde famílias demoraram a conseguir a enterrar seus mortos por causa do elevado número de mortos. Agora, no país, a situação vem se estabilizando – mas esse não é o caso do restante de países da região, onde o pico ainda não foi atingido, segundo especialistas.
O Peru é o país mais afetado da América Latina, com mais mortes per capita, depois do Brasil. Chile e México estão atrás.
Trabalho informal e cidades densas
Um dos grandes problemas no Brasil e outros países da América Latina são economias em que “grande parte da população vive com o que ganha no dia e trabalha de maneira informal”, diz Meza. Por isso, segundo ele, elas basicamente não têm como ficar em casa e respeitar lockdowns completos. É por isso que o vírus continua a se espalhar e não cair rapidamente como foi visto na Europa e na Ásia.Além disso, diz ele, a América Latina tem cidades grandes com alta densidade, “onde muitas pessoas moram sob o mesmo teto”, e uma população com muitos problemas de saúde crônicos, pobreza e sistemas de saúde pública com problemas em algumas regiões.
Isso fará com que as consequências da pandemia na América Latina sejam “muitas e difíceis”. “Os que vão sofrer mais são as pessoas em áreas com condições econômicas mais pobres.”
Por exemplo, cita Meza: “com o foco na covid-19 e nos lockdowns, tendemos a colocar as coisas de lado, como o tratamento de condições crônicas”. Com as taxas altas de diabetes na América Latina e o fato de que muitos não estão tendo o tratamento de que necessitam, haverá repercussões na saúde que irão além da covid-19.
Outro aspecto que a pandemia suscitará na América Latina é a desigualdade econômica. “Há pessoas que podem trabalhar de casa, mas muitas não podem, precisam sair de casa. Quem tem mais recursos, se sairá melhor. E quem está em desvantagem, em piores condições, se sairá pior.”
Ou seja, na avaliação de Meza, haverá um aumento nas desigualdades em áreas onde já há desigualdades enormes.
“À medida que a pandemia avança na América Latina, especialmente entre as pessoas com menos vantagens econômicas, são elas que serão mais afetadas.”
Vilela destaca como, ao recomendar que as pessoas higienizassem as mãos com frequência, “provavelmente nos esquecemos que muitas pessoas não têm acesso a saneamento básico”.
Sá Carvalho, da Fiocruz, diz que “mesmo que tivéssemos excelentes políticas públicas, haveria dificuldades no Brasil”. “Poucos recursos foram investidos em aliviar a situação socioeconômica do povo”, diz ela. No Brasil, foram R$ 600 por mês para trabalhadores informais. “A desigualdade social e a pobreza dificultam.”
A região latino-americana tampouco se destaca em relação à testagem da população. Mas o fato de que a região tem menos testes do que países como a Nova Zelândia, a Alemanha e países asiáticos “não é uma surpresa, e precisamos entender que países têm diferentes capacidades e infraestrutura”, diz Meza. “Talvez nem sejam países comparáveis.”
Para ele, dentro da América Latina, o Peru foi destacado como um país que respondeu com eficácia, assim como a Colômbia (a cidade de Medellín é um exemplo de rastreamento agressivo, testagem e administração de casos).
Falta de clareza e articulação das orientações no Brasil
Mas houve regiões da América Latina em que autoridades ajudaram menos que as outras, como o Brasil, observa Meza. “Isso causa confusão na população e faz o respeito às regras ser menor.”
“Pode ser apontado como a razão pela qual vemos agora particularmente um grande surto como estamos vendo no Brasil, comparável só aos Estados Unidos – e comparável também em uma administração e resposta ruins do governo federal, deixando tudo para os governos e Estados locais.”
Desde o início da pandemia no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro tem se colocado contrário às medidas tomadas por governadores, como lockdowns ou suspensão de atividades. Além disso, houve divergências com ministros da Saúde – dois deles deixaram o cargo, que está vago, apenas com um ministro interino, há mais de um mês.
A divergência entre autoridades políticas de cada região do Brasil e a Presidência faz as pessoas deixarem de seguir orientações, opina Vilela. “Em pandemias, é importante ter um papel de liderança muito claro. Não pode haver divergência de orientação, ou a população fica confusa e não sabe como agir. Precisamos de informação clara, objetiva e de qualidade”, afirma.
As propostas foram contraditórias, diz Sá Carvalho, e faltou articulação entre diferentes níveis. “No início da pandemia o ministro da Saúde teve um conjunto de propostas que teve um impacto, e a epidemia cresceu de forma mais lenta que nos Estados Unidos. A partir de um certo momento, entra outro ministro, e o presidente considera que a covid-19 não é uma doença importante.”
Futuro
Eventualmente, haverá um decréscimo de casos e mortes na América Latina, diz Meza. “Um dos maiores desafios, particularmente em países da América Latina, onde há segmentos da população que não podem ficar em casa, haverá muita pressão para encerrar lockdowns e reabrir a economia. E, com isso, aumento de novos casos enquanto o sistema se acomoda novamente”, afirma.
E esses novos casos poderão ser vistos, provavelmente, em novas regiões. Por exemplo: se a capital paulista viu um grande surto de casos, eventualmente isso vai diminuir na cidade e outras cidades podem virar o foco.
“Alguns grandes países com muitas cidades grandes poderão ver surtos menores ou regionais que estão em diferentes fases”, diz. “Nosso foco deve começar a mudar para comparar regiões, cidades e estados e não países.”
Além disso, o próximo mês levará o inverno para a América do Sul, o que pode desempenhar um papel na disseminação do vírus. Países como o Chile e a Argentina, que antes estavam controlando bem o vírus, já estão vendo aumentos, observa Meza.
No Brasil, regiões já vêm relaxando a quarentena. “A população vai de uma forma gradual abrindo mão. De forma lenta, mas progressiva, abrindo mão do confinamento porque acham que não é necessário”, observa Edlaine, da Universidade Federal de Jataí.
Para ela, houve uma “suspensão de atividades não essenciais no país”, mas nunca foi feito o bloqueio total.
Agora, caminhando para o mês de julho, “inverno, com sintomas gripais muito mais recorrentes”, diz ela, “não é indicado que justamente passemos por uma flexibilização, por um relaxamento das medidas de prevenção e controle”.
“O ideal é que conseguíssemos segurar esse distanciamento físico que foi adotado desde o início pelo menos até o final do mês de julho”, opina ela.
Acompanhando a curva epidemiológica em outros países, é possível observar que a epidemia, ou pelo menos essa primeira onda, tem uma duração de 12 a 14 semanas. “Se isso foi seguir no nosso país, nada melhor do que seguir com distanciamento até meados de julho para a segurança da população”, afirma.
Enquanto isso não ocorre, é preciso lembrar que à medida em que o isolamento é afrouxado, há uma explosão de casos, observa Sá Carvalho. “A essa altura do campeonato no Brasil, não temos como adotar a estratégia de impedir a transmissão. A questão é administrar. Aumentou a quantidade de casos? Restringe.”
“É preciso manter a vigilância. É muito difícil parar a economia completamente por muitos meses. Então, você afrouxa um pouco e gradativamente e, sempre que precisar, você recua. Um passo para frente, um passo para trás, mantendo a quantidade de casos no cabresto, preso, para não explodir”, diz ela.
O Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (IHME), da Universidade de Washington, calcula que o número de mortes por coronavírus na América Latina deve chegar a 388 mil em outubro, com Brasil e México sendo responsáveis por dois terços das mortes. Segundo a pesquisa, o Brasil deve ultrapassar 166 mil mortes.