FOLHAPRESS – Embora o governo de Portugal tenha anunciado o acesso gratuito à vacina contra a Covid-19 também para imigrantes (regularizados ou não), estrangeiros que moram no país relatam dificuldades para conseguir ter acesso ao imunizante.
Em grupos de apoio nas redes sociais e em consultas às associações de apoio, os relatos de estrangeiros com problemas para se vacinar são recorrentes.
Os problemas foram admitidos pelo coordenador da força-tarefa de vacinação, o vice-almirante Henrique Gouveia e Melo. Em audiência no Parlamento nesta semana, ele afirmou que está sendo desenvolvido um plano especial voltado para os migrantes.
Pessoas em situação migratória irregular são as mais afetadas, mas estrangeiros com a documentação em dia também relatam empecilhos burocráticos.
O maior gargalo para o acesso à vacinação –e aos cuidados de saúde em geral– é a dificuldade para obtenção do chamado número de utente: o código de identificação dos cidadãos no Sistema Nacional de Saúde (o SUS português).
Ainda no começo da pandemia, o governo de Portugal anunciou a regularização temporária dos estrangeiros com pedidos pendentes junto ao SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteira). A medida de caráter humanitário foi tomada justamente para garantir o acesso, nas mesmas condições de um cidadão português, aos cuidados de saúde e também à vacina.
Cerca de 223 mil estrangeiros foram abrangidos pela medida. Os dados por país ainda não foram divulgados, mas os brasileiros foram a nacionalidade mais beneficiada.
O despacho oficial diz explicitamente que o processo de regularização em andamento já é suficiente para a “obtenção do número de utente, acesso ao Serviço Nacional de Saúde ou a outros direitos de assistência à saúde”. Na prática, porém, isso nem sempre acontece.
A emissão do número de utente fica a cargo dos centros de saúde locais, que verificam os documentos dos estrangeiros e atribuem o respectivo código a cada um. Como não existe um procedimento uniformizado para esse processo, a concessão do número de inscrição acaba variando entre cada unidade.
É aí que muitos imigrantes acabam em um labirinto burocrático: eles têm direito a receber o imunizante, mas simplesmente não conseguem realizar o agendamento prévio, que é obrigatório em Portugal.
Mesmo que a pessoa já esteja na faixa etária abrangida pela fase da vacinação, o sistema de autoagendamento exige o preenchimento do número de utente para concluir o processo.
Sabendo das limitações causadas pela ausência do número de identificação, o governo lançou, em março, uma página especial em que estrangeiros sem número de utente podem se cadastrar para receber a vacina.
Nestes casos, os interessados deixam o nome e telefone para que algum responsável entre em contato para agendar a vacina. O atendimento aos inscritos, porém, caminha a passos lentos.
O coordenador da força tarefa de vacinação se reuniu recentemente com representantes de diversas entidades de auxílio a migrantes para discutir um jeito eficaz de incorporar os estrangeiros na estratégia de imunização.
“Estamos a estabelecer um plano, e é precisamente através das associações que nós queremos trazer estes migrantes irregulares e que têm alguma desconfiança do processo de contato com as autoridades”, afirmou Gouveia e Melo, na terça-feira (23) em audiência com deputados.
Cyntia de Paula, presidente da ONG Casa do Brasil em Lisboa, foi uma das presentes no encontro. “O governo criou uma plataforma para quem não tem número de utente, mas o que nós recebemos de feedback da nossa comunidade, e também de outras, é que ninguém foi contactado através dela”, disse.
“Mas eu achei uma boa iniciativa da força tarefa. Eles vieram até as associações para nos ouvir, para traçarmos uma estratégia comum para fazer as pessoas se inscreverem. No nosso ponto de vista, os brasileiros estão se inscrevendo, mas não estão sendo chamados”, completou.
Até a manhã desta segunda (28), o Ministério da Saúde de Portugal não respondeu ao questionamento de quantos estrangeiros sem número de utente se inscreveram para a vacinação –e quantos efetivamente foram vacinados.
Um motorista de aplicativos de entrega de 47 anos, que está entre os contemplados pela legalização temporária, chorou ao relatar para a reportagem as dificuldades para conseguir o número de utente e disse ter muito medo de ficar doente –ele pediu para não ser identificado.
Em Portugal há dois anos, o motorista afirmou que já perdeu as contas da quantidade de emails e de idas ao centro de saúde em busca do documento.
A pouco mais de uma semana da abertura da vacinação para sua faixa etária, o cabeleireiro paulista Fabio Silva, 27, também em processo de regularização, é outro que não consegue o número de utente. Ele deu entrada no pedido em janeiro.
“Eu pago meus impostos sem nunca atrasar. Não estou pedindo um favor, é um direito. Graças a Deus eu tenho condições de pagar um plano de saúde, porque eu tenho medo de me acontecer alguma coisa e ficar na mão”, relatou.
O sistema de saúde pública em Portugal é universal, mas não é gratuito. O governo, porém, subsidia a maior parte do custo final. Portugueses e estrangeiros com número de utente podem se beneficiar da coparticipação, mas, quem está em situação irregular, muitas vezes é cobrado com o preço cheio das tabelas.
Embora esteja com visto válido em Portugal, Luciana Lopes, 48, enfrentou uma verdadeira peregrinação para conseguir o número de utente. Em Lisboa para uma pós-graduação na área de comunicação, com visto de um ano, ela viu seu pedido negado por várias vezes.
“Me deram um número provisório para atendimentos de doença aguda, mas esse número não entra no formulário para marcar a vacina. Preenchi outro formulário para quem não tem o utente, mas nunca obtive resposta”, afirmou.
Luciana disse que, ao notar que a vacinação já estava na faixa dos 30 anos (ela tem 48), chegou a cogitar ir para a França para ter acesso ao imunizante.
“Depois de muitas ‘patadas’ de atendentes, consegui falar com um verdadeiro anjo que me ajudou. Ela me encaminhou para o posto de vacinação e me ajudou falando com o colega de lá para concluir meu agendamento e ser vacinada”, completou.
A boa disposição de funcionários mais sensibilizados às dificuldades burocráticas tem sido decisiva, de acordo com vários relatos.
Segundo a presidente da Casa do Brasil em Lisboa, a entidade tem tentado intermediar alguns contatos com centros de saúde, sensibilizando as equipes para os direitos dos migrantes.
Com quase 50% da população com ao menos uma dose da vacina contra a Covid-19 e 28,4% com a imunização completa, Portugal, que tem cerca de 10 milhões de habitantes, tenta agora acelerar a imunização como forma de frear uma quarta onda da doença.
Uma das iniciativas para acelerar a taxa de vacinação foi a possibilidade, a partir desta semana, de vacinação sem agendamento prévio em alguns centros específicos.
Na manhã desta segunda-feira (28), alguns estrangeiros que não conseguiram marcar a vacina pelo sistema de autoagendamento se dirigiram para a unidade que deveria inaugurar o novo sistema.
A iniciativa, porém, foi adiada e só vai começar a valer a partir de quinta (1º). Além disso, o horário de atendimento para essa modalidade será restrito, funcionando apenas de 19h até às 21h.
Com casos em alta, Portugal registrou, nesta sexta-feira (25), 1.604 novas infecções pelo novo coronavírus. É o valor mais alto desde 19 de fevereiro.
Especialistas associam o aumento das infecções à rápida disseminação da variante delta, identificada primeiro na Índia. Mais transmissível do que as anteriores, a cepa já é responsável por mais de 60% dos casos na região de Lisboa.