O GLOBO – As eleições americanas só ocorrerão em novembro deste ano, mas o desempenho do ex-presidente republicano Donald Trump nas primárias e nas pesquisas já preocupa integrantes do governo brasileiro. Uma das avaliações que correm em Brasília é que, se Trump conseguir voltar à Casa Branca, poderá haver impacto não apenas na política externa brasileira, mas também no âmbito doméstico, com aproximação dos EUA com o ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2023). Outros temores passam pela possibilidade de um enfraquecimento ainda maior da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da chance de reforma do Conselho de Segurança da ONU.
Na Super Terça da semana passada, quando 15 estados e um território foram às urnas no dia mais importante das prévias, Trump e o presidente democrata Joe Biden confirmaram o favoritismo e venceram praticamente em todas as votações — uma maratona eleitoral que acabou com a saída da republicana Nikki Haley da disputa, abrindo caminho para a revanche entre Biden e Trump daqui oito meses.
Segundo um integrante do governo, o desenrolar da candidatura do republicano pode ser analisado com base em duas vertentes. Na primeira, sob o ponto de vista da política interna, uma vitória de Trump fortalecerá a direita no mundo, o que é ruim para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva — em artigo publicado no jornal El País, da Espanha, na semana passada, o líder brasileiro afirmou que o mundo enfrenta um “preocupante aumento da extrema direita”. A expectativa é de que, se o Trump ganhar, será consolidada uma aliança entre os trumpistas e aliados de Bolsonaro.
Já na segunda vertente, que é a perspectiva da política externa, Lula poderia criar um “modus vivendi”. A frase, em latim, significa um arranjo que permite que partes conflitantes coexistam em paz. Um experiente diplomata afirma que Lula, em mandatos anteriores, dava-se melhor com o republicano George W. Bush (2001-2009) do que com o democrata Barack Obama (2009-2017). Porém, o próprio presidente já declarou, há poucos dias, que torce pela reeleição de Biden.
“Espero que o Biden ganhe as eleições. Espero que o povo possa votar em alguém que tenha mais afinidade. Tenho visto o Biden em porta de fábrica. O discurso do Biden desde o começo até agora é em defesa do mundo do trabalho”, afirmou em entrevista a uma emissora de televisão.
Lula se referia a uma parceria com Biden lançada em setembro de 2023, à margem da Assembleia-Geral da ONU. Ele e o líder americano anunciaram a criação de uma frente internacional pelo trabalho decente.
Reação adolescente
De acordo com um interlocutor próximo ao Itamaraty e ao Palácio do Planalto, Trump representa uma espécie de refluxo na política externa americana. Uma avaliação é que Trump poderá vir com força total em seu lema “Make America Great Again” (Torne os EUA Grandes Novamente). Nesse caso, o comércio poderá ser abalado não só com o Brasil, mas com o resto do mundo.
Em Brasília, há dúvidas importantes no ar. Uma delas é se Trump e o presidente argentino, Javier Milei, vão se aliar em áreas de interesse do Brasil. Um vídeo que viralizou na internet mostra que Milei, ao cumprimentar o ex-presidente americano em um evento, reagiu como um fã adolescente ao encontrar um ídolo.
Trump já defendeu a reforma do Conselho de Segurança da ONU para que o organismo seja mais eficiente. O risco calculado no governo Lula é de que, numa possível aliança com Milei, ele poderia apoiar a Argentina como representante da América Latina em uma vaga permanente no Conselho, ignorando a candidatura do Brasil.
Outro tema considerado caro para o governo Lula é a reforma da OMC. Por culpa dos EUA, o Sistema de Solução de Controvérsias multilateral perdeu a eficácia e precisa ser restabelecido. O órgão, que julga recursos em disputas comerciais, está paralisado, porque os EUA vêm bloqueando a nomeação de árbitros. Essa investida começou no governo Obama e se aprofundou na era Trump.
Beatriz Rey, cientista política e pós-doutoranda na USP, afirma que um eventual retorno de Trump à Casa Branca teria três impactos no Brasil. O primeiro diz respeito ao apoio global à democracia.
“Trump é um dos líderes do populismo de extrema direita que tenta subverter instituições democráticas. Assim, sua eleição colaboraria para minar o apoio aos sistemas democráticos no mundo”, diz ela.
O segundo impacto trata da relação bilateral entre EUA e Brasil, principalmente quando o assunto é a agenda verde. No momento, há convergência entre os dois países na área climática.
“Trump não deve colaborar nesse aspecto. Entretanto, é preciso lembrar que o Brasil tem diferenciais competitivos na área ambiental e não depende exclusivamente dos EUA para fazer a transição para uma economia verde e sustentável”, observa a cientista política.
Por fim, Rey avalia que, no caso de uma mobilização da base bolsonarista com a eleição de Trump, isso dependeria mais de atores internos do que externos.
Dawisson Belém Lopes, professor de Política Internacional do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, destaca que a boa convivência entre Lula e Biden funciona como uma apólice de seguro para o Brasil. Ele cita o episódio em que o brasileiro comparou a matança de judeus na Segunda Guerra aos ataques de Israel contra civis palestinos em Gaza.
“Nesse episódio, só porque Lula tem boa relação com o governo Biden que a coisa não tomou uma dimensão maior. Os EUA não quiseram incomodar o Brasil com isso”, afirma Lopes.
Já em um cenário de vitória de Trump, haveria motivos para temer, na visão do especialista. No entanto, a personalidade de Trump poderia surpreender a todos. “Trump se notabilizou, em seu mandato, por se dar bem com líderes que contam com apoio popular. Ele se destacou por aproximações improváveis, como o líder supremo da Coreia do Norte (Kim Jong-un) e o presidente do México (López Obrador), que é um homem de esquerda”.