BBC – O presidente Jair Bolsonaro afirmou na quarta-feira que “zeraria” os tributos federais que incidem sobre os combustíveis caso os governadores façam o mesmo com o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) também aplicado ao setor. “Eu zero o federal hoje se eles zerarem o ICMS. Está feito o desafio aqui agora”, disse.
O ICMS é responsável pela maior parte da arrecadação dos Estados. Em São Paulo, por exemplo, o tributo representa 84% (R$ 144 bilhões) de tudo o que o Estado recolhe por vias próprias.
Perder parte desse montante seria um golpe duro nos cofres estaduais — e também municipais. Segundo economistas e os próprios Estados, o corte poderia impactar serviços públicos para a população, como segurança, educação e até o salário dos servidores. O presidente não explicou se haveria uma compensação pela perda do tributo.
Nos últimos dias, Bolsonaro tem utilizado a estratégia de culpar os governadores pela alta do preço dos combustíveis, pois, segundo ele, normalmente apenas a esfera federal é responsabilizada pelos aumentos.
“Nós queremos mostrar que a responsabilidade final do preço não é só do governo federal. Nós temos aqui (os impostos federais) PIS, Cofins, Cide. Vai onerar para nós também, mas os nossos governadores têm que ter, obviamente, responsabilidade no preço final do combustível”, afirmou ele à imprensa, na manhã de ontem.
O presidente alegou que “baixou três vezes” o preço dos combustíveis nas refinarias nos últimos dias, embora esse tipo de decisão caiba à Petrobras, com base em fatores como valor do barril do petróleo e cotação do dólar, e sem a necessidade de interferência do governo. De acordo com ele, porém, o valor final para o consumidor não caiu, e um dos motivos seria o tributo estadual.
A estratégia de Bolsonaro tem sido rechaçada pelos governadores. No início da semana, 23 deles publicaram uma carta em resposta ao presidente. Disseram que os Estados têm autonomia para definir alíquotas de ICMS e que o setor de combustíveis representa, em média, 20% da arrecadação do tributo.
Na tarde de ontem, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afirmou que a proposta de Bolsonaro é “populista e pouco responsável”.
Por que o ICMS é importante para os Estados?
O ICMS é um imposto estadual que incide sobre vários setores econômicos: combustíveis, indústria, comércio, bebidas, telecomunicações, medicamentos, cigarros, entre outros. São os Estados que decidem a alíquota do tributo — ou seja, o valor que será cobrado de cada uma dessas áreas.
A porcentagem que cada um dos setores tem no bolo do ICMS também varia entre as unidades da federação.
Em São Paulo, por exemplo, o setor de combustíveis — a área que Bolsonaro quer “zerar” — representou 12% da arrecadação total de ICMS no ano passado, segundo a Secretaria da Fazenda. Em valores, isso significa R$ 17,4 bilhões em um ano. Seria esse o montante que o Estado deixaria de arrecadar caso o “desafio” do presidente seja aceito.
Já no Pará, o setor de combustíveis tem importância maior ainda. A área representou 29,1% de tudo o que o Estado recolheu com ICMS em dezembro, por exemplo — ou R$ 328 milhões em um mês. No total, o imposto representa 86% de tudo o que o Pará arrecada por conta própria — a conta exclui os repasses federais.
No Paraná, os combustíveis são 22,% do ICMS. No Rio de Janeiro são 14%. Em Minas Gerais, 20%.
“A importância dos combustíveis na arrecadação do ICMS depende muito do perfil do Estado: atividade econômica, o tamanho da população, ou se ele é mais agrícola, ou tem mais indústrias”, explica Vilma da Conceição Pinto, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Mas não só os Estados sofreriam com a queda de arrecadação proposta por Bolsonaro. A Constituição determina que os municípios recebam 25% do que é recolhido com o ICMS.
Esses repasses estaduais — e também os federais — são importantíssimos para as cidades menores, que têm dificuldade em arrecadar tributos municipais em virtude da pouca atividade econômica.
Caso Bolsonaro resolva “zerar” impostos federais sobre combustíveis, o governo também sofreria uma queda de arrecadação. No ano passado, os tributos PIS/Cofins e Cide arrecadaram R$ 27,4 bilhões aos cofres públicos, segundo a Receita Federal. Proporcionalmente, porém, a perda seria maior para Estados e municípios.
Qual seria o impacto de zerar o ICMS nos combustíveis?
Por lei, os recursos do ICMS não são vinculados a despesas fixas, assim como outros impostos. Ou seja, os governos estaduais precisam anualmente aprovar um Orçamento que defina como os valores serão usados no período.
Portanto, o montante recolhido pode ser utilizado para bancar diversas despesas e investimentos de Estados e municípios, como pagamento de salários, saneamento básico, construção de escolas e melhorias na segurança publica, entre outras.
Esse mecanismo tributário é diferente das chamadas contribuições, que servem para cobrir determinado setor. A famosa e finada Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), por exemplo, funcionava dessa forma: inicialmente, ela foi criada para financiar a saúde pública, embora depois outras áreas tenham sido incluídas no pacote de recursos.
Em São Paulo, o ICMS é utilizado para financiar as universidades estaduais, como USP, Unesp e Unicamp.
A USP, por exemplo, recebe 9,57% de toda a arrecadação do imposto. Em dezembro, foram repassados R$ 559 milhões para a universidade. Esse montante é utilizado para pagar os salários de professores e funcionários, custeios de manutenção e investimentos em estrutura, entre outras despesas.
A Secretaria da Fazenda de SP afirma que uma redução do ICMS “poderia afetar todos os serviços públicos prestados pela administração estadual, incluindo educação básica, fundamental e superior, saúde e segurança públicas, entre outros.”
“Essa redução da receita poderia afetar o caixa dos governos em um volume expressivo. Alguns Estados, como Minas Gerais e Rio de Janeiro, já enfrentam uma situação fiscal dramática, inclusive não pagando salários de servidores”, explica a economista Vilma da Conceição Pinto, da FGV.
“Os governos iriam precisar tirar de outros lugares para cobrir despesas que são obrigatórias por lei, como educação e saúde, além dos salários.”
Para Amir Khair, especialista em contas públicas, a estratégia de Bolsonaro é essencialmente política. “É uma jogada para colocar a culpa pelo preço dos combustíveis nos outros, os governadores. O governo sabe que os Estados estão em situação fiscal delicada, com problemas para pagar pessoal e a Previdência”, explica o economista. “Esse tipo de proposta dificilmente seria aprovada e, caso Bolsonaro insista, os governadores poderiam pressionar as bancadas no Congresso para paralisar votações de interesse do governo”, explica.
O ICMS tem problemas?
Para parte dos economistas, o ICMS não é um “um bom imposto” dentro do já complexo sistema tributário brasileiro.
Isso porque ele é um tributo que incide na origem. Ou seja, ele é cobrado no território onde fica a empresa e o comércio, por exemplo, e não onde está o consumidor.
Como o imposto é regulado pelos Estados, cada governo pode decidir qual será a alíquota para um determinado setor. “Esse aspecto cria o que chamamos de ‘guerra fiscal’, pois um Estado pode dar incentivos para atrair empresas ou mantê-las em seu território”, explica Vilma.
Esse é um dos fatores que fazem com que empresas deixem um Estado para se instalar em outro, gerando desempregos e outros problemas sociais.
Há propostas de reformas tributárias que mexeriam um pouco nessa lógica. Mas, segundo a economista Vilma da Conceição Pinto, elas não atacam o problema principal do sistema tributário.
“O sistema brasileiro é reconhecidamente complexo e oneroso, com sobreposições de impostos. Além disso, ele incide sobre o consumo e não sobre a renda. Uma pessoa que ganha R$ 1 mil por mês paga o mesmo imposto de quem ganha R$ 1 milhão”, diz ela.
As informações são da BBC News Brasil