FOLHAPRESS – O périplo que enfrentou para tentar chegar aos Estados Unidos junto com os dois filhos, a esposa e o sogro não deu alento a El Gocho, imigrante da Venezuela que prefere deixar público apenas seu apelido. Ele acaba de fazer o caminho inverso, após o retorno de Donald Trump. Foram oito países, 16 dias e muitas extorsões.
Como ele, outros imigrantes que aguardavam no México uma reunião com o serviço migratório americano para tentar emigrar de maneira regular dão adeus ao sonho após o governo republicano cancelar todos os agendamentos, militarizar a fronteira, disseminar discurso de ódio contra imigrantes e prometer deportá-los de forma massiva.
O desafio é que essa “migração de contrafluxo”, no sentido contrário do sonho americano que buscaram, é repleta de obstáculos logísticos, econômicos e de segurança. Os imigrantes se veem expostos a grupos criminosos e caminhos desconhecidos a pé, de ônibus e de barco.
Do outro lado, os países, em especial os da América Central, ainda não sabem como responder ao desafio que se impõe com o trânsito desses retornados. Isso tudo em um momento no qual o congelamento de ajuda externa dos EUA paralisou serviços de organizações que atuam nos locais onde essas pessoas hoje chegam.
Ao longo da última semana, a fronteira da Costa Rica com o Panamá, por onde usualmente passavam imigrantes que atravessavam o perigoso estreito de Darién para então seguir por terra rumo ao norte, viu se acumularem grupos de imigrantes que voltaram do México em direção a Venezuela, Colômbia e Equador. Mas o Panamá não os deixa passar, e cenas de confronto com policiais nas ruas foram registradas.
Uma organização humanitária global ligada à ONU e que atua no local diz, sob reserva, prever que até mil imigrantes se acumularão naquele ponto do trajeto até o início desta semana nesse ritmo.
El Gocho esteve lá. O venezuelano, pai de um menino de 3 anos e de uma menina de 9, vivia há um ano e meio na Cidade do México, onde aguardava o agendamento de uma reunião com o serviço de migração dos EUA.
A família chegou à capital mexicana pelo caminho mais comum e mais difícil: saiu do Peru, onde vivia, e foi por terra, enfrentando obstáculos como Darién, a “selva da morte”. “Até que Trump voltou, tudo se acabou e nós decidimos retornar”, diz El Gocho.
Ele e a família não conseguiram deixar o país em um voo comercial porque, explica, necessitavam de uma autorização venezuelana, um salvo-conduto, que não foi fornecida pelo consulado. Empreenderam, então, o longo, custoso e difícil trajeto de volta por terra.
Da Cidade do México, El Gocho e a família foram de ônibus até o estado mexicano de Chiapas, no sul do país. Na fronteiriça Cidade Hidalgo, cruzaram o rio Suchiate, que divide o território da Guatemala. “Pagamos uma ‘taxa de segurança’ aos cartéis para que não acontecesse nada e pudéssemos atravessar tranquilos”, relata.
Dali, foram à capital guatemalteca e depois, também de ônibus, à fronteira de Peñas Blancas, com Honduras. Todos os trajetos entre fronteiras terrestres foram feitos por meio das chamadas “trochas” caminhos construídos ilegalmente para passagem de imigrantes e grupos de economias ilegais.
Ao ir de Honduras para o território da ditadura da Nicarágua e chegar à capital, Manágua, eles foram apreendidos por militares, que colheram suas informações e os levaram até a fronteira com a Costa Rica. No país, as economias da família haviam acabado, e eles tiveram de esperar até que parentes que ainda vivem na Venezuela lhes enviassem dinheiro para que pudessem seguir.
Entrar no Panamá foi a etapa mais difícil. Na primeira tentativa, foram expulsos e ainda receberam uma multa de US$ 500 cada um, que passou a ser aplicada pelo país no ano passado para imigrantes em situação irregular. “Mas nós, os venezuelanos, somos mais fortes que o ódio”, diz El Gocho. Horas depois e de madrugada, eles voltaram a tentar entrar e conseguiram.
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O desafio, então, era contornar a selva de Darién, que liga o Panamá à Colômbia, sem necessidade de enfrentar novamente a jornada de até uma semana na floresta inóspita e exposta a atuação de gangues que praticam roubos, violência física e sexual, como fizeram na ida.
Para isso, com custo de US$ 230 por pessoa, atravessaram de carro comarcas indígenas, onde há menos fiscalização, até um porto para, assim, contornar por mar a perigosa travessia. Ali, embarcaram em lanchas, por US$ 300 cada um, até o porto de Obaldía, quase na fronteira com a Colômbia. Foram 12 horas no mar.
É todo um esquema de transporte de imigrantes organizado por moradores locais com o qual se lucra. E muito.
Dali, El Gocho e a família tomaram outra lancha para Capurganá, a cidade colombiana que nos últimos cinco anos foi dominada pela migração e que em grande medida está sob o controle do Clã do Golfo, cartel colombiano que é outro a lucrar com a imigração.
O venezuelano relata que a máfia tentou extorquir sua família até entender que eles eram imigrantes que regressavam para a Venezuela, àquela altura sem dinheiro algum.
Então, conseguiram chegar a Cúcuta, cidade colombiana na fronteira com a Venezuela, seu destino final, a terra natal da qual fugiram e para a qual agora voltaram.
Diante do caos, o governo do Panamá promoveu uma reunião com sua contraparte costarriquense. Mas as resoluções que saíram dali estão distantes de uma solução. Acordou-se que os imigrantes ficarão em um abrigo na fronteira, e de lá pagarão para serem levados de ônibus até a fronteira do Panamá com a Colômbia. Eles não terão de cruzar Darién.
O Panamá tem convênios com a Colômbia e o Equador para deportar imigrantes dessas nacionalidades. Com a Venezuela de Nicolás Maduro, porém, não. O país governado por José Raúl Mulino e a ditadura chavista romperam relações.
O Ministério da Segurança panamenho insiste que busca alternativas para que os imigrantes venezuelanos que estão retornando consigam sair do país, seja por terra ou por mar. Enquanto isso, rotas ilegais, perigosas e lucrativas para seus controladores se consolidam.
Quem atua na ponta dessa cadeia está preocupado. A advogada Silvana Botbol, presidente da organização humanitária Cadena, ligada à comunidade judaica, na Costa Rica menciona a falta de apoio aos imigrantes que tentam retornar.
Muitos já não têm bens ou emprego em seu país. Tantos outros estão endividados, porque devem altos valores a coiotes ou a conhecidos de quem pegaram empréstimos para empreender o caminho rumo aos EUA. Em seus países, dificilmente terão apoio do governo.
Nações como o Equador e a Colômbia anunciaram e melhoraram seus sistemas de acolhimento. Mas isso para aqueles que são deportados em voos dos EUA, não para esses que regressam sozinhos e por terra após verem as portas dos EUA se fecharem de vez.
“Essas pessoas estão no limbo”, diz Botbol.