Agência Globo – Se alguém perguntasse em 2010 se existe alguma ligação por terra entre a América do Sul e a do Norte, a resposta provavelmente seria não. Na época, o único ponto de encontro entre os continentes — a perigosa selva de Darién — era considerado um trajeto (quase) impossível. Mas nos últimos anos a floresta de mata fechada entre a Colômbia e o Panamá tem atraído cada vez mais imigrantes, que realizam a travessia à mercê de coiotes do Clã do Golfo, o mais poderoso cartel de drogas colombiano. Em 2023, mais de meio milhão de pessoas arriscaram suas vidas no trajeto, entre elas 113 mil menores, garantindo um lucro de US$ 65 milhões aos narcotraficantes. O número é mais que o dobro do último recorde, batido no ano anterior, e superior à soma de todos os cruzamentos registrados entre 2010 e 2022.
Para Juanita Goebertus, diretora da ONG Human Rights Watch (HRW) para as Américas, o aumento da procura ocorre devido ao bloqueio de opções mais seguras para os migrantes chegarem aos EUA e a piora nas condições de vida de populações de países como Venezuela, Equador e Haiti, três principais origens dos migrantes que atravessaram Darién no ano passado. Dos 520 mil que cruzaram em 2023, 328 mil eram venezuelanos, 57 mil equatorianos e 46 mil haitianos. China (25 mil) e Colômbia (18 mil) completam o ranking. A nível regional, 81% dos migrantes eram de origem sul-americana.
Riscos no caminho
De acordo com um relatório da Human Rights Watch publicado nesta quarta-feira, aqueles que se arriscam em Darién estão sujeitos a uma série de violências, incluindo de natureza sexual, que na grande maioria dos casos não são investigadas. Segundo o documento, feito a partir de dados oficiais e entrevistas com imigrantes, trabalhadores humanitários e autoridades, mais de 1.500 estupros foram relatados desde 2021, mas não há quase registros de punições contra os abusadores.
Em ambos os lados da fronteira, os governos falham em garantir a segurança na selva e há pouquíssima coordenação entre autoridades dos dois países, constata a HRW. No entanto, a situação é ainda pior no território colombiano, por onde se inicia a travessia. Lá, narcotraficantes ocupam o vácuo deixado pelo Estado e cobram US$ 125 de cada um que tenta entrar na floresta, relata a diretora da HRW. Os valores, no entanto, podem ser ainda maiores de acordo com os pacotes oferecidos, que podem chegar a US$ 500 ou mais. A rede criminosa envolve o controle também de empresas que oferecem serviços de translado e segurança ao longo do caminho.
“Ao controlar o fluxo migratório, o Clã do Golfo fez mais de US$ 65 milhões (R$ 328 milhões) em um ano”, afirma Goebertus. “Ao redor da Colômbia, eles operam em diferentes atividades criminosas, não só tráfico de drogas, como também mineração ilegal e assassinatos de líderes sociais. No caso de Darién, eles decidem por qual rota os migrantes podem ir, mantendo a maioria deles separados e cobrando pelo serviço de guia. É nessa parte do território, sob o seu controle, que a maioria das violações aos direitos humanos acontecem”.
Um dos casos documentados pela HRW, em outubro de 2022, envolve um casal venezuelano que embarcou na rota migratória com seu filho de 6 anos e dois outros menores. Durante a trilha, eles contam que um homem se ofereceu para ajudá-los a carregar a criança. No entanto, o estranho logo os ultrapassou, e eles só se reencontraram na manhã seguinte, quando o homem alegou que o menino havia se afogado enquanto atravessavam um rio. Autoridades locais só iniciaram as buscas oito dias depois, e a Interpol se envolveu no caso após um mês de procura. Até hoje, a criança não foi encontrada.
Para Goebertus, a possibilidade de envolvimento do Clã do Golfo em tráfico humano dentro da selva de Darién não deve ser descartada “embora o crime seja de difícil comprovação, ainda mais considerando o ambiente inóspito da floresta. No entanto, ela frisa a importância de diferenciar “migrantes que estão voluntariamente tentando escapar do contexto muito hostil nos seus países” e, por isso, recorrem a coiotes, de pessoas traficadas para outros fins”.
Sem ajuda, sem proteção
O documento divulgado nesta quarta pela HRW também destaca falhas cometidas pelo Panamá. Um deles foi a suspensão do trabalho da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) no país, em março deste ano, sob a alegação de que o acordo com a organização humanitária teria se encerrado em dezembro passado. No entanto, desde outubro a entidade — que desempenha um papel fundamental na assistência aos migrantes e requerentes de asilo que chegam por Darién — tem buscado renovar o acordo.
“Restringir o trabalho do MSF é exatamente o oposto do que precisa ser feito para endereçar a situação no Estreito de Darién”, reforça Goebertus.
Segundo a diretora, o governo panamenho implementou uma política de controle com o objetivo de levar as pessoas que chegam pela fronteira com a Colômbia o mais rápido possível para a Costa Rica, muitas vezes violando o direito dos migrantes de buscarem o status de refugiado ou buscarem asilo.
Para Goebertus, os números evidenciam a urgência de uma coordenação regional: “Os níveis de imigração na América Latina são tão dramáticos que demandam uma resposta regional. Nem a Colômbia nem o Panamá estão sendo capazes de lidar com esse problema sozinhos — afirma. — Em primeiro lugar, os EUA têm uma enorme responsabilidade de estabelecem políticas de migração para não barrar migrantes que estão fugindo de um ambiente hostil. Em uma perspectiva mais regional, estabelecer mecanismos de proteção temporária ou transitória para regularizar os migrantes na região é importante, além de estabelecer políticas de integração social e econômica para que, por exemplo, as informações sobre o mercado de trabalho sejam compartilhadas”.