FOLHAPRESS – Quatro ônibus entraram em Manhattan na manhã de 17 de agosto e saíram de uma avenida movimentada para uma rua lateral no centro do distrito. Os nomes impressos nos ônibus – VLP Charter, Coastal Crew Change— não davam qualquer pista sobre sua missão. A única coisa que os delatava eram as placas do Texas.
Um a um os passageiros desceram numa cidade desconhecida. Alguns estavam cansados, mas sorridentes; outros apenas cansados: homens de mochila, mulheres com bebês e cobertores no colo e crianças agarrando ursinhos de pelúcia. Um homem estava sem sapatos, só de meias.
O comissário de assuntos de imigrantes da cidade, Manuel Castro, recebeu cada um com um aperto de mão. Um homem de camiseta verde cumprimentou as crianças com um “toca aqui”. Havia mesas carregadas de lanches, álcool em gel, roupas e sacos coloridos de livros. Pessoas de prancheta na mão ofereciam papéis para serem distribuídos para ganhar uma nova identidade: além de serem imigrantes ilegais no país e candidatos a asilo, os recém-chegados iam engrossar as fileiras dos nova-iorquinos sem-teto.
O fluxo de migrantes chegados a Nova York, a maioria deles fugindo de criminalidade e economias destroçadas na América Central e do Sul, está pondo à prova a reputação de Nova York de cidade que acolhe imigrantes de todo o mundo. O fluxo não dá sinais de diminuir, graças em parte ao governador do Texas, Greg Abbott, cuja decisão de enviar ônibus cheios de migrantes a Washington e Nova York, para incitar os democratas na questão da política de fronteira, inchou o rio humano que normalmente já flui em direção ao norte.
Há muitos anos, Nova York é movida pelo suor e pelo trabalho de imigrantes. Mas sua capacidade de ajudá-los a instalar-se e a se assentar está sendo cada vez mais sobrecarregada.
A chegada de 129 migrantes ao terminal de ônibus da Autoridade Portuária no dia 17 foi o maior total diário visto até agora na campanha do governador Abbott. Mas representou apenas uma parte da migração maior, que envolve milhares de pessoas. De acordo com a prefeitura de Nova York, o sistema de albergues da cidade já abriga 4.900 candidatos a asilo.
Eles seriam a principal razão pela qual a população do principal sistema de albergues para sem-teto cresceu 13% em maio, chegando a 51 mil pessoas. Discute-se muito sobre até que ponto esse aumento pode ser atribuído a migrantes e até que ponto a fatores locais como o fim de uma moratória dos despejos, além de flutuações sazonais. Mas, seja qual for a razão, a situação está crítica.
Os albergues para famílias compõem mais da metade do sistema de albergues da cidade e, no início, o índice de vagas disponíveis, que deveria ser mantido em 3%, caiu para menos de 1%, segundo a Legal Aid Society (associação de assistência jurídica), que monitora as condições nos albergues. Em 18 de agosto, segundo a entidade, o índice de vagas estava em 0,18%; ou seja, havia 19 quartos disponíveis em todo o sistema, que abriga mais de 10 mil famílias.
A resposta inicial de Nova York ao fluxo de migrantes foi marcada por semanas de hesitação e passos em falso, destoando profundamente da retórica de “acolher a todos” do prefeito Eric Adams. Algumas famílias dormiram num escritório de acolhida no Bronx, infringindo a lei. Algumas foram separadas por erros burocráticos. E defensores dos migrantes disseram que a prefeitura deixou de fornecer ajuda básica como alimentação, fraldas e auxílio médico.
Grupos de assistência a imigrantes disseram que, duas semanas atrás, em uma tentativa de ser fotografada, a equipe do prefeito Adams se inseriu num esforço de acolhida montado por voluntários na Autoridade Portuária, arrancando alimentos das mãos de voluntários para que o prefeito pudesse ser filmado distribuindo-os. “Pessoas da equipe do prefeito gritaram com os refugiados, mandando que sorrissem para ele”, contou Ariadna Phillips, fundadora da entidade South Bronx Mutual Aid.
O relato dela foi corroborado por outro voluntário que foi fotografado perto do prefeito. O gabinete da prefeitura negou que tenha ocorrido qualquer coisa do tipo e descreveu o relato dos voluntários como “anedota falsa, revoltante e infundada”.
Grupos de assistência disseram que durante boa parte do verão eles intervieram para ajudar migrantes que estavam confusos e desorientados na cidade.
“Nós sabemos que número de sapato eles calçam. Estamos a par de suas necessidades médicas. Conhecemos seus processos, sabemos onde eles precisam se apresentar para o serviço de imigração”, disse Sergio Tupac Uzurin, voluntário junto à ONG NYC ICE Watch. “A prefeitura não estava fazendo nada disso.”
Mas nos últimos dias a prefeitura começou a agir de modo mais coordenado. Os centros de acolhida que o Escritório de Assuntos de Imigrantes, da prefeitura, montou na Autoridade Portuária para receber os ônibus enviados do Texas vêm dando assistência muito necessária a pessoas que chegam a Nova York sem ideia de onde ir ou o que fazer.
A prefeitura alugou 1.300 quartos em 13 hotéis para famílias de migrantes. Como prevê que o fluxo de migrantes deve continuar, já lançou um pedido para outras 5.000.
Embora muitos migrantes tenham se enredado na burocracia municipal, alguns que fizeram viagens perigosas e exaustivas para chegar aos Estados Unidos estão aliviados com a relativa facilidade de orientar-se no sistema de Nova York.
“Imagine que chegamos até aqui caminhando”, comentou Carolina Flores, 31, que fugiu da Venezuela com seu marido e quatro filhos e que agora está vivendo com eles num albergue no Brooklyn. “Tudo é muito bom. Um hotel e casa de graça, isso é algo que jamais aconteceria em nosso país.”
Até o Dia do Trabalho, 5 de setembro, a prefeitura prevê abrir um centro de triagem e albergue com 600 quartos para famílias migrantes no centro da cidade e que deve permanecer em funcionamento “pelos próximos seis a 12 meses”, segundo a proposta.
Outro período de seis a 12 meses, com fluxo contínuo como no último mês, pode levar ao colapso o sistema de albergues, já sobrecarregado.
Desde meados de julho a população dos albergues familiares cresceu 8,5% —muito acima do aumento de 1% visto normalmente no período do verão, segundo constatou uma análise do New York Times. Se a tendência se mantiver por um ano, a população dos albergues para famílias pode quase dobrar, passando das atuais 31 mil pessoas para quase 60 mil.
É pouco provável que as condições na fronteira tragam algum alívio: 19 mil pessoas foram detidas em junho fazendo a travessia da fronteira, superando em 10% o número de junho do ano passado, que havia sido recorde. E a migração geralmente aumenta nos meses mais frios.
O desejo da prefeitura de absorver esses migrantes, como absorveu ondas anteriores, reflete o fato fundamental de que Nova York sempre dependeu de imigrantes em todos os setores de sua força de trabalho, desde restaurantes e saúde até as artes, tecnologia e finanças.
Quando nova-iorquinos deixam a cidade, imigrantes tomam seu lugar. Em muitos casos, imigrantes realizam trabalho mal pago que outras pessoas rejeitam. A migração internacional para a cidade caiu fortemente no primeiro ano da pandemia, deixando lacunas no mercado de trabalho que só vêm se agravando enquanto a cidade procura se recuperar.
Mas os novos migrantes, muitos dos quais chegam sem dinheiro e sem os contatos sociais para se estabelecer rapidamente, estão sobrecarregando o sistema. A necessidade de encontrar imediatamente abrigo para milhares deles –Nova York é uma das poucas cidades americanas que é obrigada por lei a acolher qualquer pessoa que peça abrigo— se choca com a oposição à construção de novos albergues para os sem-teto.
As reações dos recém-chegados ao sistema de albergues não têm sido entusiasmadas. “Não me sinto bem no albergue porque sou gay”, contou Pedro Gutierrez, 30, que chegou da Venezuela em 4 de agosto e foi enviado para um albergue em Wards Island. “Algumas pessoas lá falam coisas negativas a meu respeito e me assediam.”
Dixon Arambulet, 30, também chegou recentemente da Venezuela e está vivendo no mesmo albergue, onde diz ter dificuldade em dormir.
“Sempre há gente fumando, bebendo e brigando”, disse Arambulet, que era barbeiro em seu país. Ele conta que dorme com a cabeça sobre a mochila para evitar que alguém roube seus documentos.
O que ele mais precisa é de um emprego, diz, para poder sair do albergue. Uma semana mais tarde, ele ainda não havia encontrado nada.
“Saí hoje e um garoto me disse que vai falar com um homem sobre trabalho de faxina –para varrer e recolher o lixo em um prédio”, ele escreveu em mensagem de texto. “Falou que vai me avisar.”