AFP – Apesar da intensidade dos debates sobre a polícia dos Estados Unidos e seus métodos, todos os envolvidos no julgamento pela morte do afro-americano George Floyd parecem determinados a fazer com que o julgamento seja de um homem e não de uma instituição.
Este “não é o julgamento da polícia ou dos métodos policiais”, disse o promotor Jerry Blackwell na abertura do processo para examinar a responsabilidade do ex-agente Derek Chauvin. “Não há causa política ou social na sala”, afirmou o advogado de defesa Eric Nelson.
Chauvin, um ex-policial branco de 45 anos, é acusado de matar Floyd em 25 de maio, em Minneapolis, ao pressionar seu joelho contra o pescoço da vítima por quase 10 minutos enquanto o homem negro de 46 anos estava deitado no chão de bruços e algemado.
A tragédia levou milhões de pessoas a se manifestarem em todo o mundo contra o racismo e a brutalidade policial e gerou um debate nos Estados Unidos sobre a necessidade de reformas nas forças de segurança.
Algumas vozes críticas pediram que os fundos da polícia sejam “cortados” para redirecioná-los a outras ações sociais. Várias cidades tomaram medidas e a Câmara dos Representantes abordou a ampla imunidade de que gozam as forças policiais.
Para evitar essas reformas, a polícia e seus defensores foram rápidos em apresentar Chauvin como uma ovelha negra que não reflete os valores da profissão de forma alguma, uma retórica muito ouvida esta semana no tribunal.
Chauvin “violou as regras”, o “treinamento” e a “ética” do serviço policial, apontou na segunda-feira Medaria Arradondo, um afro-americano que dirige o Departamento de Polícia de Minneapolis.
“Não sei que tipo de postura ele improvisou, mas não é algo que ensinamos”, disse Katie Blackwell, ex-diretora da Academia de Polícia de Minneapolis, também fardada.
A força “mortal” usada por Chauvin “não era de modo algum necessária”, opinou o policial mais antigo da cidade, Richard Zimmerman, na sexta-feira.
– “Maçã podre” –
Essa avalanche de depoimentos é excepcional. De fato, nos Estados Unidos, é muito raro que policiais testemunhem contra um colega. Existe até uma expressão, “a parede azul do silêncio”, para descrever o código tácito que força os policiais a permanecerem calados se um colega comete um abuso.
Essa parede já havia começado a rachar muito antes do julgamento. Arradondo já havia declarado que Chauvin cometeu um “assassinato”, seu sindicato considerou sua demissão “justificada” e a Câmara Municipal de Minneapolis, seu empregador, concordou em pagar à família de Floyd 27 milhões de dólares antes mesmo do veredicto.
Os honorários dos advogados do réu são custeados por uma associação policial, mas a entidade diz que é obrigada a fazê-lo para todos os seus membros.
Em casos anteriores envolvendo agentes da polícia, seus colegas vinham em sua defesa “ou levantando pontos válidos ou simplesmente por uma reação instintiva”, explicou Ashley Heiberger, uma ex-policial que virou consultora. “Isso não aconteceu desta vez: cada vez que víamos um comentário, era negativo”.
Para Kate Levine, professora da Faculdade de Direito Cardozo de Nova York, essa pode ser uma estratégia. “Minha preocupação é que, se Derek Chauvin for condenado, os departamentos de polícia que o empregaram poderão dizer: ‘Esse cara era uma maçã podre, não temos um problema'”, argumenta.
“Pode ser que neste caso estejamos diante de um sociopata, mas na maioria das vezes os agentes fazem o que foram treinados para fazer”, acrescentou a especialista.
O ativista reformista D.A. Bullock, de Minneapolis, também se mostrou cético com o depoimento de Arradondo. “Encorajo as pessoas a olharem para suas políticas e não para sua atuação”, afirmou ele ao The New York Times.
Enquanto o chefe da polícia da cidade se gabava das “mudanças” em seu departamento, que, segundo ele, coloca “a compaixão e a dignidade” no centro do que fazem, Bullock disse que “não confia em seu testemunho sobre as verdadeiras reformas”.