BBC BRASIL – Após os venezuelanos votarem a favor da reivindicação da região de Essequibo em um referendo, Nicolás Maduro propôs nesta terça-feira (5/12) uma lei para declarar a criação de um Estado no território disputado entre a Venezuela e a Guiana.
Maduro determinou, em reunião com seu governo, que inicie “imediatamente o debate na Assembleia Nacional e a aprovação da lei orgânica para a criação da Guiana Essequiba” como um Estado venezuelano.
Ele também orientou a empresa estatal de petróleo PDVSA a “criar a divisão PDVSA-Essequibo” e conceder “imediatamente” licenças operacionais para a exploração de petróleo, gás e minerais no Essequibo, controlado pela Guiana, mas reivindicado por Caracas.
Essequibo — também conhecido como Guiana Essequiba — é um território a oeste do rio Essequibo, no norte da América do Sul, que compreende 159 mil quilômetros quadrados.
A área, que faz fronteira com o Estado brasileiro de Roraima, é rica em recursos naturais e florestais.
A BBC News Brasil consultou especialistas da área militar para entender qual seria o papel do Brasil em um eventual conflito pela disputa do Essequibo.
Segundo os analistas, uma incursão de qualquer tipo não parece provável no contexto atual.
Vias terrestres
A fronteira entre Venezuela e a região de Essequibo é predominantemente formada por floresta densa, o que dificulta o deslocamento de tropas e viaturas blindadas.
“A fronteira entre a Venezuela e a Guiana é muito grande, mas uma parte substantiva dela consiste em floresta, com poucas regiões de acesso com característica de cerrado”, diz Augusto Teixeira, professor visitante do Departamento de Estudos da Guerra da King’s College London.
Segundo o especialista, as poucas áreas que estariam disponíveis na divisa para uma incursão venezuelana permitem apenas o uso de poucas forças de infantaria a pé.
Por isso, uma ação mais ampla teria que passar pelo território brasileiro, onde há rodovias que permitiriam a locomoção.
“Por terra, a opção da Venezuela seria se deslocar pela Ruta 10 e ingressar no Brasil, descendo até a BR-174”, diz Ronaldo Carmona, professor de geopolítica da Escola Superior de Guerra (ESG).
Seguindo o caminho descrito pelos analistas, na fronteira entre Roraima e Essequibo os municípios mais sensíveis são Bonfim e Normandia, essa última na região da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Já na divisa entre Venezuela e Brasil, Pacaraima, no norte de Roraima, é a cidade usada para tráfego.
Mas segundo os analistas consultados pela BBC News Brasil, uma incursão é pouco plausível atualmente.
“O Brasil em hipótese alguma vai permitir o uso militar do seu território”, diz Carmona. “O outro meio para uma incursão venezuelana seria aeronaval, mas isso seria muito mais custoso.”
“A Venezuela entende que usar nosso território seria trazer o Brasil de forma ativa para a disputa e escalar mais o conflito”, complementa Augusto Teixeira.
O próprio ministro da Defesa, José Múcio, afirmou em entrevista ao G1 que a região da tríplice fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela está “garantida” pelas Forças Armadas.
“O Brasil tem que garantir as suas fronteiras, e nossas fronteiras estão garantidíssimas. Não vamos permitir [tropas da Venezuela passando pelo Brasil]. Isso eu asseguro”, disse.
Augusto Teixeira afirmou ainda à BBC que há outras questões logísticas que podem dificultar esse processo.
“Grande parte do quantitativo militar da Venezuela está na região próxima a Caracas e à costa. Não é tão fácil movimentar essas tropas até a fronteira com a Guiana”, afirma.
Diplomacia e dissuasão
O Brasil também já vem despenhando um papel diplomático importante diante das ameaças da Venezuela.
Fontes ouvidas pela BBC News Brasil contam que a preocupação do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com o assunto tem alguns meses.
No dia 9 de novembro, o presidente brasileiro e da Guiana conversaram por videoconferência e, segundo um diplomata brasileiro, o presidente guianense expressou suas preocupações sobre o referendo a Lula.
Duas semanas depois, no dia 22 de novembro, Lula enviou o assessor-especial para assuntos internacionais, o embaixador Celso Amorim, a Caracas.
Ele se reuniu com Nicolás Maduro na capital venezuelana e ambos teriam, segundo as duas fontes, conversado longamente sobre o assunto.
Uma das fontes ouvidas pela BBC News Brasil disse que, ao longo da conversa, Maduro teria tentado tranquilizar Amorim sobre as reais intenções do seu governo em relação à região.
O brasileiro, por sua vez, teria expressado sua preocupação com o tema e reforçado a posição de que a disputa seja resolvida de forma pacífica.
Dias depois, integrantes dos Ministérios das Relações Exteriores e da Defesa passaram a analisar, conjuntamente, a crise na região.
Foi a partir dessa análise que, na quarta-feira, o Ministério da Defesa divulgou a nota em que anuncia a intensificação das ações de defesa na fronteira.
De acordo com o jornal Folha de S. Paulo, houve o deslocamento de 200 militares para um pelotão de fronteira localizado na cidade de Pacaraima, em Roraima, no extremo norte do país.
Em nota, o Exército falou ainda em “meios de emprego militar nas cidades de Pacaraima e Boa Vista”, entre os quais 16 viaturas blindadas que serão deslocadas ao longo do mês de dezembro.
Um dos diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil avalia que a crise preocupa o Itamaraty porque um conflito entre os dois países romperia com a tradição recente de solução pacífica de disputas territoriais na região e porque aconteceria em uma área extremamente próxima ao Brasil.
“O Brasil é um tradicional mediador dos conflitos da América do Sul e, nesse caso, o governo atual é amigo tanto da Venezuela quanto da Guiana”, diz Carmona.
Mas segundo o especialista, o papel brasileiro vai além da negociação e alcança o patamar de dissuasão por meio da força militar.
“Sobretudo pela negação do uso do nosso território e pelos efeitos que uma aventura militar venezuelana pode ter para o ambiente de segurança da América do Sul e, em especial, da Amazônia.”
Mas, para o professor da King’s College, a resposta brasileira poderia ser ainda mais contundente diante dos últimos acontecimentos.
“A dissuasão tem que ocorrer por meio de canais políticos e diplomáticos, mas também por meio da sinalização de força. Ou seja, o Brasil tem que colocar ameaças críveis”, diz Teixeira, que avalia que o deslocamento de militares e veículos blindados feito até agora não é significativo o suficiente como advertência.
‘Imprudente e aventureiro’
No referendo realizado no domingo (3/12), cinco perguntas foram feitas aos venezuelanos para saber se eles apoiariam a reivindicação de um vasto território em disputa com o país vizinho.
A consulta pública aprovou as propostas do governo, que incluem a criação do Estado de Guiana Essequiba como parte do território da Venezuela, além de um plano para conceder cidadania venezuelana aos seus habitantes.
Segundo o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), mais de 10,4 milhões dos 20,7 milhões de eleitores elegíveis votaram na consulta popular.
A contagem inicial dos resultados foi questionada por políticos e analistas da oposição, que alertaram para a possibilidade de as respostas dos eleitores a cada uma das cinco questões do referendo serem contadas como votos expressos separadamente.
A baixa participação dos eleitores nas assembleias de voto em Caracas e outras cidades gerou dúvidas.
A cifra de 10,5 milhões anunciada pelo CNE é a maior participação já registada em uma eleição venezuelana.
Maduro, porém, classificou o feito como uma “vitória esmagadora”.
“Demos os primeiros passos de uma nova etapa histórica na luta pelo que nos pertence, para recuperar o que os libertadores nos deixaram”, afirmou.
Já o governo da Guiana disse que permanecerá “atento” depois da divulgação dos resultados do referendo.
“Devemos permanecer sempre atentos”, disse o ministro das Relações Exteriores da Guiana, Hugh Todd, à agência de notícias AFP após o referendo.
“É claro que nosso monitoramento deve ser sempre de alto nível. Embora não acreditemos que o presidente (Nicolás) Maduro ordene uma invasão, ele pode fazer algo que é imprevisível”, acrescentou.
Anteriormente, no dia da votação, o presidente da Guiana, Irfaan Ali, explicou em entrevista ao programa Newshour da BBC que leva a sério a retórica e a atitude das autoridades venezuelanas sobre o assunto – que, segundo ele, não tem sido positiva.
“A segunda questão tem a ver com comportamento imprudente e aventureiro. Este tipo de retórica e o referendo podem levar a muitas circunstâncias, pessoas agindo por conta própria, alimentando sentimentos públicos sobre uma questão em torno da qual se está tentando criar um conflito”, disse.
Em nota enviada à BBC News Brasil, o Exército afirmou que vem mantendo constante monitoramento e prontidão de seus efetivos para garantir a inviolabilidade das fronteiras.
“Atualmente, no lado brasileiro, o movimento na fronteira tem sido normal”, diz o centro de comunicação social das forças.
Ainda segundo o comunicado, o reforço de tropas e a intensificação da presença da 1ª Brigada de Infantaria de Selva na faixa de fronteira fazem parte de “uma ação estratégica pré-planejada” que foi adiantada.
Além da retórica?
Estima-se que 300 mil pessoas vivam em Essequibo e um conflito poderia ter impactos econômicos e sociais nas áreas brasileiras próximas.
O professor Augusto Teixeira explica que, além das perturbações mais imediatas de um conflito na região, uma invasão da Venezuela poderia provocar consequências indiretas para o Brasil.
“O Brasil já sofre com os custos para acolher e interiorizar os refugiados gerados pela crise interna na Venezuela. Se tiver uma guerra, esse fluxo pode aumentar muito”, diz.
Além disso, o Estado de Roraima pode voltar a depender da Venezuela para fornecimento de energia.
Segundo o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, negociações estavam em curso para acelerar o processo de importação da energia do Linhão de Guri , que liga o complexo hidrelétrico de Guri-Macágua, na Venezuela, com a cidade de Boa Vista.
Roraima é o único Estado que não está conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIN) e, até 2019, recebia energia elétrica por meio do Linhão de Guri, mas o fornecimento foi interrompido após apagões no país vizinho.
Um elemento que também causa preocupação junto ao governo brasileiro é a incerteza sobre o processo decisório dentro do governo Maduro.
Em novembro, segundo o jornal Folha de S.Paulo, emissários do governo venezuelano disseram que, a depender do resultado do referendo, o governo de Caracas poderia “ser forçado pelo povo” a agir.
As declarações teriam sido dadas durante um encontro de ministros da Defesa e de Relações Exteriores da América do Sul, em Brasília.
Mas os especialistas consultados pela BBC News Brasil afirmam que qualquer incursão ainda parece pouco provável no momento.
“É pouco provável que a Venezuela vá além da retórica nesse momento”, diz Ronaldo Carmona. “Do ponto de vista militar, qualquer ação venezuelana na Guiana representa um risco de envolvimento de atores extrarregionais, em especial dos Estados Unidos. E isso não interessa a ninguém.”
Segundo o professor da Escola Superior de Guerra, as próprias circunstâncias internas venezuelanas podem dissuadir o governo de Maduro de maiores ações, em especial a proximidade das eleições marcadas para 2024.
“Uma aventura militar pode ser muito custosa, especialmente em um momento em que a Venezuela passa por uma recuperação econômica após o levantamento das sanções americanas”, diz.
Augusto Teixeira, porém, acredita que as últimas ações do regime Maduro, com a criação de um “Estado de Defesa” no território disputado e a nomeação de um general para comandá-lo, são um claro sinal de escalada.
Segundo o especialista, a disputa por Essequibo é um tema que mobiliza diversos setores da sociedade venezuelana e pode ser explorado pelo atual presidente para garantir votos nas eleições no próximo ano – e não prejudicá-lo.
“Ao invadir Essequibo, a Venezuela pode tentar forçar a barra para uma negociação que seja favorável ao seu reconhecimento como ator tradicional da política sul-americana”, afirma.
“Uma incursão ainda é mais improvável, mas não creio que seja totalmente impossível.”